Todos são cada um

Data 28/maio/2004

     Cada qual com sua sina. Cada qual com suas ruínas. Cada qual com sua mania. Cada qual com sua concepção de vida. Cada qual devoto de sua rainha. Cada qual consumindo sua cocaína. Cada qual suportando sua latrina. Cada qual com sua eterna menina, com seu eterno menino. Cada qual remoendo seus desatinos. Cada qual com sua condição peregrina. Cada qual freqüentando o seu cassino. Cada qual ingerindo sua pinga. Cada qual jogando com sua mandinga. Cada qual ostentando sua sigla. Cada qual maldizendo sua fadiga. Cada qual envolto por intrigas. Cada qual apaixonando-se por suas ninfas. Cada qual odiando seus inimigos. Cada qual esfalfando-se pr seus filhos. Cada qual enaltecendo seus maridos. Cada qual se julgando muito digno. Cada qual portando seu estilingue. Cada qual portando sua proteção divina. Cada qual escondendo sua farinha. Cada qual tomando sua mesinha. Cada qual fugindo à sua carnificina. Cada qual achando inigualável sua oficina. Cada qual ocultando sua orgia. Cada qual desconsiderando sua covardia. Cada qual às voltas com seus tios, com suas tias. Cada qual sobrepondo sua família. Cada qual curtindo sua nostalgia. Cada qual com sua cobiça. Cada qual com sua apatia. Cada qual com sua valentia. Cada qual com sua esquizofrenia. Cada qual escondendo seu vício. Cada qual negando seus caprichos. Cada qual recriminando os narcisos. Cada qual se achando o melhor dos umbigos. Cada qual com seus litígios. Cada qual com suas idas e vindas. Cada qual com suas partidas. Cada qual dando suas mordidas. Cada qual com sua soberbia. Cada qual esperando um outro dia. Cada qual alentando sua justa aposentadoria. Cada qual com sua preguiça. Cada qual não tendo nada com isso. Cada qual suportando seus compromissos. Cada qual safando-se de seu lixo. Cada qual mais enfeitando seu nicho. Cada qual inflando o valor de seu serviço. Cada qual justificando o seu sumiço. Cada qual discordando de sua dívida. Cada qual enaltecendo sua cartilha. Cada qual com sua grife. Cada qual apondo seu grifo. Cada qual alardeando seu grito. Cada qual escondendo sua esquisitice. Cada qual normalizando sua maluquice. Cada qual condenando as caretices. Cada qual apontando uma burrice. Cada qual eximindo-se de suas imundícies. Cada qual fugindo à sua planície. Cada qual entoando o seu hino. Cada qual descascando o seu pepino. Cada qual com seus suplícios. Cada qual postando-se em seu mezanino. Cada qual portando seu ensino. Cada qual desconversando seu cinismo. Cada qual disfarçando seus oportunismos. Cada qual enaltecendo seu capitalismo. Cada qual insistindo com seu comunismo. Cada qual negando seu nazifascismo. Cada qual divulgando seu cristianismo. Cada qual se atribuindo humanismo. Cada qual execrando o populismo. Cada qual condenando o nefasto distributivismo. Cada qual com seu íntimo. Cada qual com seu signo. Cada qual com seu dígito. Cada qual com seu ínfimo. Cada qual com seu limbo Cada qual com seu instinto. Cada qual com seu ímpeto. Cada qual com sua ignomínia. Cada qual com sua paralisia. Cada qual combatendo suas estrias. Cada qual fugindo das fímbrias. Cada qual degustando suas alegrias. Cada qual tragando suas sensaborias. Cada qual conquistando sua sabedoria. Cada qual condenando as tiranias. Cada qual tendo que explicar suas saídas. Cada qual inquirindo seu juízo. Cada qual driblando o ridículo. Cada da qual recompondo seus prejuízos. Cada qual carregando seu obelisco. Cada qual buscando os bons fluidos. Cada qual se pondo contra os malditos. Cada qual com seus ritos. Cada qual rezando contra os maus espíritos. Cada qual se dando aos seus atos contritos. Cada qual querendo suas carícias. Cada qual com suas inafastáveis malícias. Cada qual querendo suas delícias. Cada qual com seus castiços pruridos. Cada qual construindo e sofrendo seu intranferível destino.

Nova inquietude do salteador de astros

Data 21/maio/2004

     Sabia sim reconhecer algumas compulsões suas. Conheça-te a ti mesmo. Por isso, se sabia um homem. Um homem do seu mundo. Um homem forte (elencaria instantaneamente exemplos, se quisessem) com experiências de vida irrefutáveis. Um homem orgulhoso de si: a Deus reverenciava o amor absoluto e irrevogavelmente imparcial; ao próximo, o respeito à dignidade e igualdade, a solidariedade, a compaixão amparadora; de si, a exigência de hombridade, do pão com o suor de seu rosto. Um homem frágil, com seus limites (E tanto assim era, que logo desconversaria para não expô-los.) Nos quais centrava sobremaneira seu reaprendizado de ser.
Enfim, um homem. Vencedor, perdedor; brutamontes, amável; corajoso, medroso; vaidoso, modesto; preguiçoso, trabalhador; ambicioso, ponderado; ousado, tímido; impaciente, tolerante; revolucionário, conservador; alegre, triste; áspero, dócil; sonhador, pragmático; teimoso, compreensivo; passadista, contemporâneo.
Vivente com suas neuroses controladas, seu estresse observado; expiando suas dores e frustrações; expiando as razões, as desrazões, a insensatez tecendo e destecendo o cotidiano mundo terrestre, seu desvanescente, impúrio, inebriante e espúrio habitat, exposto em sua órbita a céu aberto.
Uma consciente compulsão. Que o punha em estado de gratuidade – o aberto céu.
Mesmo o céu de sol imperante. O seu azul cambiante, com suas instáveis nuvens ao sabor do humor do tempo e do vento. Chumaços de paina em impercetíveis movimentos pairando ao dispor de olhos que nelas projetam coisas e seres. Enormes pedaços de chumbo, de zinco. Inconsútil teia sépia ameaçando inquietantes tempestades.
Mas arrebatava-o o céu de noite. O céu povoado por seus infindáveis astros. E gostava de tê-lo assim uma incógnita realidade amadoristicamente conhecida. Não o tomava com olhos clínicos. Da Astronomia procurava por vezes uma ou outra informação que lhe bastasse para situá-lo perante os astros com os quais mais gostava de se relacionar.
Eram poucos. Nada de aplicadas e demoradas incursões no mundo de constelações e galáxias, como um certo conhecido seu devotado astrônomo amador. A astronomia como o seu grande e prazeroso entretenimento. Seu diletantismo.
Tem para o céu de noite a cotidiana olhada diária. Mais ou menos demorada. Conforme. Todavia, ainda que de relance, passa o olhar globalmente.Busca a lua. E dela encaminha-se na direção dos outros seus preferidos. Para em seguida uma vista geral.
Hábito. Súbito se pega olhando o céu. Então flagra certos peculiares vôos. Certos raros pássaros cortando o espaço. Uma aeronave: um ponto mínimo gizando o imenso quadro azul celeste.
De noite, as formas e performances da lua em sua peregrinação. Dela para o brilho florido de Vênus. Daí para o áureo requinte de Marte. Depois se detém na recatada sensualidade de sua resplendente Aldebarã. E quase sempre lhe sobram umas estrelas cadentes em vertiginosa estripulia joaninamente desarranjando o engessado firmamento. Os eclipses. Súbito, sutil objeto estranho. Tudo a olho de ignóbil amador do espaço.
Em incertas horas, ele deliberadamente atenta contra a ordem celeste e a ordem social. Então, investido de sua incondicional e inexplicável capacidade de demiurgo, decide com seus preferidos astros bulir.
Assim foi que em venturosa e complexa operação, com eficazes estratagemas, para que as ordens celestial e social não se desestabelizassem, roubou, para presente de aniversário a seu amor, um plenilúnio deslumbrantemente peculiar. Assim também procedeu com Marte há pouco, quando este se dera a Terra em sua raríssima plenificação.
Agora, ultimamente, o céu anda a ostentar uma Vênus estupenda.

A binária negra branca vida

Data 07/maio/2004

     É certo que no mundo, na vida, nada é uníssono, unânime. A vida é binária. Desde muito cedo aprendera. Então, nada era definitivo. Viver é contínuo. Ser é ir-se.
Menino, fora aprendendo. A cor da pele, dos cabelos. Os seus e os de seus amigos. Cabelos negros e lisos; cabelos louros encrespados. Sobre pele clara, dita branca. Que, quando muito ao sol, fogueava feito rosa exposta em jardins.
Cabelos negros encaracolados. Sobre a massa encefálica; sobre o rosto, quando homens em barba; sobre o púbis quando homens com sua acabada genitália. E negra pele como o carvão de extinta brasa. Desta persistindo sua cor nos lábios, nas gengivas da boca.
E como a descobrir que a binária condição não conseguia unanimidade, também tinha entre seus amigos o branco-negro; o negro-branco. Os quais constavam do fichário escolar, da ficha dos registros dos times de campeonatos mirins de futebol como morenos.
A raça Brasil, rompera o binarismo negro e branco. E fez-se a condição ternária conseqüente: mulata, cafuza, cabocla. Desde de aí, dessa infância feita de extroversões, mas introversões acentuadas, de ficar horas enrustido consigo (Onde você estava, menino?! Você sumiu!) pensando os amigos, as amigas; pensando os homens; pensando a escola, as professoras; pensando o futebol, sua arrebatadora paixão; pensando a vida, o mundo.
Descobria, sim, que se a natureza se dera em aparente forma binária de organização com seu ritmo sim-não; com sua aparente macrodualidade dia-noite, vida-morte, quente-frio, claro-escuro, amor-ódio, deserto-floresta.
Descobria, sim, que todavia, por detrás desta aparência mantinha sua mulaticidade, sua cafuzice, seu caboclismo. Consigo carregava, entre o verão e o inverno, o outono; entre o inverno e o verão, a primavera; entre o dia e a noite, o crepúsculo; entre a noite e o dia, a madrugada aurora; entre o macho e a fêmea, o andrógino; entre o homem e a mulher, o misógino.
E descobria que a sociedade se encarregava de aprofundar, depurar, refinar o quebrado binarismo. A rota sua diversa da da natureza segue multíplice instável, movida pelo pulso e impulso do efêmero. Que a binaridade, o dualismo não perde o pé, não se desenraíza, se mantém matriz, mas infindamente segue multifaceando-se. Parece ser a condição humana que a sociedade a si estabelece para sustentar-se em vida até o fim que se faz por espécime como norma; por espécie em seus espasmos de paranóia – um de seus diferenciadores da natureza inatamente sóbria.
Assim, notara, que sua vida se conduzira com acentuada presença do binarismo branco e negro. Menino, convivera com um amigo com quem dividia o mesmo devotado amor à bola. Nos campos de pelada, depois no time infanto-juvenil da cidade, fizeram dupla famosa. Remetiam-nos a Pelé-Coutinho. Apenas que eram um negro e o outro branco. E a conjugação do campo projetava-se para outros estados sociais. Juntos no clube, no passeio público, na escola. E nisto também se diferenciavam: um, apaixonado pelos gibis, os livros; o outro mal conseguia suportar a escola, a leitura: rodar pião, empinar pipas, andar pelas ruas.
Moço, outra parceira negro e branco. Afinidade estabelecida no ginásio, estendida ao colégio.      Depois dispersada pelas buscas diferentes de formação adulta. Todavia, uma convivência intensa enquanto durara. Já o negro (ambos pobres) se ressentia visivelmente da silenciosa discriminação. Contra o que o branco supunha apoiá-lo, estimulá-lo e ladeá-lo nos confrontos e afrontas. Nisso assentava-se a outra nítida diferença neles. Enquanto a pele falava alto em um, no outro alto falava o inconformismo ante a opulência e a miséria, a boa-vida e fartura e o trabalho estafante e a escassez bruta. Perderam-se. No reencontro, a vida já havia dotado-os de grandes antagonismos, que mal conseguiram manter-se para a respeitosa amizade.
E uma terceira. Branco e negro amigos feitos pela mesma ambição de tornar a vida humana em democracia de verdade. Convivência política. Partilharam campanhas eleitorais, direção de entidades sociais. Depois, enfastiados, deixaram isso. Amigos arredios. Cada qual com sua vida e vez em quando se vendo. Diferenciava-os seus afazeres profissionais e situações sociais. E a morte, mais tarde, sobrepôs a laje da separação absoluta.

A conquista da personagem

Data 03/maio/2004


     Rigorosamente publicava a cada cinco anos. O quinto livro já era aguardado com certo incômodo, pois o sétimo ano entrara em meses e a obra não dava sinais de vida.
Os mais próximos, acautelados, sempre achavam um jeito de tocar no assunto. Ele limitava-se a desconversar quase sempre emitindo a mesma afirmação, que, no entanto, parecia pouco convincente.
Algumas hipóteses em meio ao discreto círculo dos devotados à literatura se disseminavam. Dizia-se que o filão de seu imaginário se esgotara para a literatura. Que perdera a musa inspiradora. Que, ao contrário, a paixão era a obra que anulava a obra. Que decerto vivia a crise de quem chegou ao estágio em que a vida a menos vigorava. Que o reduzido público à sua obra tida como de leitura trabalhosa por fim o desanimara.
A todas nenhuma palavra. Nem de rebate, nem de dissuasão. Limitava-se ao direito de silêncio e de livre arbítrio à sua condição de escritor. Em matéria de literatura a palavra do escritor é sua obra. Ou a ausência dela. Um escritor não se explica quanto ao seu ato criador.
Não se deveria ver nessa atitude quaisquer sinais de arrogância. Compreendia a ansiedade de seus poucos leitores, a postura especulativa da imprensa, os prognósticos da crítica desfavorável e a apreensão da crítica favorável; o temor dos que o apontara como dos maiores. Compreendia. Contudo, tinha a convicção de que assim, com as incertezas das probabilidades, seria mesmo muito melhor.
Nenhuma justificativa conseguiria satisfazer de forma convincente. Elas iriam, isto sim, acirrar posicionamentos, insuflar discussões, exigir cada vez mais seu envolvimento em tais episódios.
Não. Reservava-se o direito de silêncio. Optava pelo efeito de seu silêncio. Insistia: não era arrogância, tampouco presunção, muito menos indiferença ou descompromisso.
Não. Não era nenhuma. Tratava-se, na verdade, de algo inconfessável, uma vez que se restringia à sua integridade pessoal. Fragilidades são reservadas ao exercício de autocrítica, de auto-análise. Não cabe, menos ainda a um escritor, expô-las ao seu exterior.
O seu romance teria sim atendido ao tempo-padrão que instituíra publicamente. Aconteceu-lhe, porém, algo perante o qual sempre se pusera cético, quando ouvia mais de um colega divulgar a perda do domínio desta ou daquela personagem. Que a personagem é que passava a exigir-lhe posturas e comportamentos.
Sua protagonista. Traçara-lhe um destino. Espécie de atração fatal ao protagonista. Corpo, alma e mente inigualáveis, irresistíveis. Dotou-a de tais qualidades, habilidades, amabilidades, sutilezas, inteligência, meiguice, beleza física aspergindo recatada sensualidade.
Enlaçar o protagonista. Cravar-lhe a seta de seu cupido. Com isso, amor cativo, lhe restabelecer a paixão pela vida a que renunciara parecia de maneira peremptória e irrevogável. Redivivo, tomaria gosto pela dificílima missão, própria a um Aquiles. Missão que ele apenas seria capaz, se o quisesse, de cumprir.
Então, o imprevisto impasse (que publicamente confessado o poria em ridículo): apaixonara-se tão perdidamente por sua protagonista a ponto de não conceber a idéia de sequer admitir o seu envolvimento amoroso com o seu protagonista.