Vento/Fogo

Vento/Fogo
Data 25/out/2004

     Esse fenômeno cotidiano, mas impossível de ser despercebido. Filho do ar que o concebe e o expele, decerto para que o carrossel do universo não se desmantele. Força tamanha do vigor do mundo que compõe e move.
Um poder descomunal. Nada se iguala e com ele demanda. As águas, das quais fica imune, pois não o molham, conduz com seu sopro impetuoso.
Seu motor faz do mar um seu corredor privilegiado. E dá à couraça do mar movimento eterno quase todo o tempo feito de ondas de toda ordem, de toda sorte.
Inodoro e insípido senhor que do dorso do mar não desapeia. E quando em crises, como gigante bêbado tomado pela fúria violenta, faz no mar devastadora tempestade. Põe o mar em descomunal vulcão cuja erupção é infernal. Há cenas antológicas que encantaram e encantam de terror cinófilos, inveterados leitores de ficção, de poesia. Atesta-o o gênio camoniano com quando os lusíadas são tomados de súbita procela: “Agora sobre as nuvens os subiam/As ondas de Neptuno furibundo;/Agora a ver parece que desciam/As íntimas entranhas do Profundo./Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam/ Arruinar a máquina do Mundo;/A noite negra e feia se alumia/Cós raios em que o Pólo todo ardia!” Atesta-o ainda a vida real diária dos povos constantemente sujeitados aos furacões que os devastam. Mesmo que agora previstos, há nada que os impeçam de tudo pôr em reboliço.
Um poder sem igual. Nada se lhe iguala. Tampouco o fogo, esse outro elemento poderoso que tudo incinera, menos o vento. Sim, quando muito o aquece. No mais, também do vento fica à mercê. Se juntos, é mesmo o inferno manifesto em terra. Tantos são os incontáveis casos dados e os que ainda hão de se dar.
Ao fogo nada contém, se o vento em seu auxílio vem. Se o vento resolve servir-se de corcel deste mágico irmão que, inexistente, de súbita combustão qualquer põe seus diabos malvados com seus tridentes a espetar fogo em tudo.
A ficção e a vida vivida são palcos memoráveis do poder desse agente indestrutível que, talvez por exaustão, cede somente à insistente intervenção da água. Que decerto com suas muitas miraculosas carícias, a que fogo algum resiste, extingue sua fúria bruta, tornando-o ao sossego de sua inexistência aparente.
Quantos edifícios vivos incinerados por seu voraz e impossível ímpeto. Quantas matas em tantos países pelo fogo devastadas. Que este, cavalgando seu irmão vento, indomável e destrutivamente foi se infiltrando.
“A imagem mais viva do inferno./E contagioso, como outrora/foi, e hoje não é mais, o inferno:/ele se catapulta, exporta,/em brulotes de curso aéreo,/em petardos que se disparam/sem pontaria, intransitivos.” Eis “O fogo no canavial” visto pelo gênio de João Cabral.
Mas também não se perca de vista que o vento e o fogo, estes irmãos da água amados e amantes, como ela, são dotados não apenas de negatividade. O vento que arrefece à Terra o furor da canícula do Sol. O vento que balouça os milharais, os canaviais, os coqueirais. O vento que esparge os muitos aromas pelo ar. O vento que, maroto, põe à mostra as coxas bonitas das meninas. Vento benfazejo em brisas. Vento que esparge os cantares de pássaros. Vento que modela e remodela a natureza. Vento que oxigeniza vidas.
E o fogo não menos. Fogo a cozer os alimentos. Fogo a incinerar os muitos putrefatos e excrementos. Fogo a aquecer invernos inclementes. Fogo a modelar os muitos utensílios à vida. Fogo a queimar a paixão, na perpetuação de gente.

Ave, Paulo

Ave, Paulo
Data 15/out/2004

     O primogênito é sempre o recomeço da nova e inédita aventura humana a se viver. O primo filho. O primo neto. Herói de todos os atos e fatos. Bandido adorabilíssimo. Concessão é a sua palavra.
E a sucessividade dos acontecimentos desta história é sem tempo. Quanto mais evolui, mais sedutora. Tanto que quando acontece um Paulo, em fase de chorão (com pinta de parrudo), nada ainda afeta. O primogênito continua sendo a festa.
Segue a história, enquanto ao segundo se dedicam os gracejos, cuidados e carinhos passageiros. Paulo é afeito a puro peito de mãe. Pouco se importa com o que se dá a sua volta. Que seja, embora, uma história bonita e bem sucedida, a verdade é que conchego e seio materno são o seu negócio.
E quanto a isso é um decidido convicto. Sem meias medidas, exige o que lhe é de justiça. E com autoridade álacre, mas incisiva. E, se preciso, protesta, grita.
Todavia, sem que mais se espere, Paulo se desprega do seio, desce do colo e se entrega ao passeio.
É certo que todo sujeito cresce, se desenvolve à medida que descobre, domina seu meio e nele se adapta. Então é esta a trilha geral que a Paulo cabe palmilhar.
Cada qual com sua sina. A do primogênito, por razões bastante conhecidas, se dava, então, em absoluta primazia. Livres vias, mínimos impeditivos. Que esses são os imediatos dotes daquele, por primeiro, por todos esperado.
Decerto o meio muito demarcado pelo outro, impôs a Paulo um acervo de empecilhos nada franqueadores, como o foram com seu irmão. Era, de certo modo, seu caminho de Damasco. Todavia, caminho próprio ao gênio daquele cristão novo: teimar contra os desafios. Impetuoso brigão pelas vontades de sua crença.
Impedi-lo demanda trabalho quase sempre parco, que Paulo é um cara determinado. Nada lhe passa batido. Tudo que lhe vai por perto é por ele batizado.
Não parece que a ele importa a primogenitude como houve na História. Paulo tanto tem de Esaú quanto de Jacó. Todavia, a grande astúcia deste não faltou nem um pouco ao primogênito. Pedro rápido aprendeu a lidar com o mandonismo de Paulo. E tampouco são gêmeos, como os da História e os de Machado de Assis.
Paulo não pede, busca. Não se importa, se o que há lhe é ou não lhe é de direito. Corre em busca do que quer, do por que briga. Puro temperamento de quem não se deixa por menos.
Assim é, porém, quando posto em estorvo. Caso não, outra é a estampa. Cara alegre de um João se faz de bobo. Riso súbito para que o outro não interfira no que lhe é a boa. Contumaz provocador que bota a gente a rir à toa.
Criatura capciosa, com quem a cordura de Pedro nunca é absoluta, pois sabe o quanto ele se infiltra e se abasta, e se abanca. Paulo não espera que lhe assinalem, simplesmente avança.
Ave, Paulo. Novo cristão de bem quista aliança, bastião segundo de um povo que se preserva na sua entrega que integra.

Gaúcho

Gaúcho
Data 08/out/2004

     Sabia nada sobre bois. Apenas por eles tinha uma certa atração.
A mansidão aparente e cotidiana deles. A placidez com que intermitentemente pastam, mesmo quando seco ou palha o capim. Ruminar incessantemente é um dos seus traços.
Sabia um pouco distinguir o boi de carro. Enormes chifres. Tanto quanto o tamanho, o peso. Um boi obeso. Capado. O que também o tornava lerdo e pacífico. Dócil à canga. Afeiçoado ao carro-de-boi modelar. Assim, causa muito estranheza um carro puxado por animal senão deste.
E o boi reprodutor. A que se denomina de touro. Solto no pasto. Sem canga, sem nada. Livre para comer, perambular. Sua nobre e privilegiada tarefa era cobrir as fêmeas em cio. Volumoso saco dependurado ostentando suas potencialidades fertilizadoras prontas a emprenhar quantas fêmeas fossem. E normalmente eram muitas. Que seus proprietários queriam-nas férteis, pródigas parideiras.
Então as fazendas medianas tinham o seu touro-mor. Garboso garanhão cujo destino era possuir as noviças novilhas quando o cio as afligisse. E mesmo certas vacas que ainda padeciam desse atávico e irresistível desejo de ser possuída por touro.
A fazenda cujo administrador era o avô tinha o seu. Belo nerole no vigor de sua pujante e insaciável juventude bovina.
Gaúcho. Toneladas de massa bovina branco-acinzentada. Imperador daqueles alguns pastos, povoados de gado de leite e de engorda. Todo dia inteiro, Gaúcho passeando e pastando por toda sua roça.
Brutamontes de boi bonito de se querer bem por causa de sua dócil bem querência com seus vários donos, os seus familiares da fazenda.
Qualquer familiar da fazenda fazia Gaúcho se entregar de alma e olhos fechados mediante alongadas carícias a bois. Depois de muito coçado, ou a uma interrupção, Gaúcho lambia com sua língua-lixa pedindo mais.
O avô, dos grandes conhecedores de gado, daqueles de classificar com detalhes um berro ou mugido não visto, afirmava que Gaúcho detinha todos os dotes exigidos de um perfeito touro nelore.
Em certos períodos de tempo a fazenda punha em aluguel o seu mais vasto pasto. Boiada alheia ficava ali mês, meses confinada. Bom capim, boa aguada de rio. Já criara fama de pastagem abnegadora.
Uma boiada dessas viera carregada de novilhas, fêmeas todas de um touro apessoadíssimo. Gaúcho, boi daqueles espaços, passeava rente à cerca observando os hóspedes.
Deu-se que o cio de uma novilha fê-la engraçar-se com Gaúcho. O touro hóspede achou de intervir.
Briga de touro era desmedida. Não havia o que os apartasse. Não havia o que os impedisse. Em vão cercas, árvores, barrancos. Vão levando tudo feito tratores de esteira. Cabeças presas. Destroem o que está em seu caminho. Somente quando a morte abate um, cessam.
Todavia, naquele dia levou ambos. Exaustos, com fundas feridas, caíram de alto barranco no rio. Gaúcho era touro de estimação. A fazenda ficou triste. Perdera um ente, mais que mero boi reprodutor. Não apenas o perfeito touro, perdera o boi Gaúcho.

Desengano

Desengano
Data 04/out/2004

     Embora as exigências fossem, no texto, muito peremptórias e claras, relutava. Não atinava com aquilo. Sim, os pormenores e detalhes informativos nenhuma margem de dúvida deixavam.
Achava-se em estado de recusa emocional. Raiva. Muita raiva, senão ódio. A bem dizer, não seria a primeira ocasião em que se vira em condição de injustiçado. Todavia, nenhuma tão forte a ponto de fazê-lo indignado assim.
Haviam-lhe dado um certo prazo. Após o que tudo o que viesse a acontecer seria atribuído a uma sua intransigência. Mais dizia o texto: que não arredariam um milímetro das concessões feitas, das quais, aliás, já se arrependiam, em virtude de ele estar usando o prazo estabelecido, o que consideravam um espicaçamento de sua paciência. Isso lhe cuspiam em um segundo recado expresso em rancoroso texto. Rancoroso, como acentuadamente ameaçador.
Ficara apreensivo. Passaram a pulular em sua cabeça acontecimentos dados pela vigilante e ubíqua mídia deflagrados mundo afora. Os homens do tempo de seu avô diriam por esse mundão. Os do tempo de seu pai diriam por esse mundo de meu Deus. Os assassinatos, por degolação, de prisioneiros mostrados com seqüências de atos pela imprensa. Mais que amedrontá-lo, punham-no numa consternação com conseqüente imobilidade. Imobilidade mental inclusive. Prostração indescritível, como se o assassinado fosse um seu querido ente.
Entendia, agora, melhor por que, conquanto não fosse o mesmo caso, os familiares ou o negociador de seqüestrados recrudescem no sigilo. Tinha calafrios. Por mais que dissipasse os maus pensamentos, não se concentrava nos afazeres inadiáveis. Logo, os desempenhava muito mal. O que se tornava grave, pois que deles fluindo com tranqüilidade dependiam os demais.
Por algum tempo cogitou muito concentradamente quanto à melhor medida a tomar. Tratava-se de uma situação de fato peculiar. E por isso mais melindrosa, muito mais exigente ao que fazer para a solução desejável. Não havia soma nenhuma de dinheiro em jogo; não havia bens, objetos preciosos nenhuns em jogo. Todavia o de que mantinham posse (os sórdidos, os bandidos) considerava tanto quanto grave. Dá-los a público, conforme rezavam as terríveis missivas enviadas pelos facínoras, talvez tivesse efeitos iguais e mesmo mais perdulários que os dos casos conhecidos.
A mídia abriria ofertas tentadoras. Seria, como dizem, o mapa da mina. Fariam, se jornal, tiragens triplicadas; difundiriam, se televisão, nos horários nobres. A internet. Um caos!.
Ninguém merecia aquilo. Era um inaceitável paradoxo. O custo, o preço, a conseqüência de toda uma vida dedicada à construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária, solidária, democrática, mais distributiva dos bens gerais.
Não se julgava tão perdedor, quanto estas causas. Nelas, qualquer acidente de percurso, como poderia vir a ser aquele, causa danos quase irreparáveis, irrecuperáveis. Todavia os detratores do bem estar social não lhe exigiam resgate. Impunham permuta. E destrutivo seria tanto o que detinham quanto o que solicitavam como substitutivo.
Muito pior: e se não trocassem? Estariam de posse de todo um grande instrumento que, isolado, nada significaria, como nada havia até então significado. Mas difundido com a distorção pretendida causaria danos para cuja reparação toda luta acaba sendo vã.
Agora, estava ali. Onde, quando e como exigiram. Aguardava de posse do substitutivo possível. Sentia-se pronto. Em condições para que o desfecho não se desse exatamente como eles queriam.