Engodo

Engodo
Data 29/nov/2004

     Esperava. Aquelas esperas famigeradas, quando se trata de ser atendido por quem por muitos é procurado. Pusera-se como todos que a isso se sujeitam. A sua aquela espera tinha, porém, a peculiaridade, não incomum, mas rara, de ser sozinha. Não havia outros naquela hora. Estava, pois, à espera de que o responsável por atendê-lo se desocupasse de – decerto – uma incumbência que não era estar ocupado com outrem que, como ele, como muitos outros, ficavam à espera. Atendia ao telefone. Atendia a um despacho urgente. Atendia a um funcionário da casa. Atendia ao seu superior. Ou atendia a seu próprio tédio.
Assacou da pasta o jornal do dia. O Iraque continuava de vento em popa sendo destruído. Yasser Arafat aguardava o fim do conflito sobre onde seria enterrado, para morrer definitivamente. O petróleo tornava à tona como o fator de instabilidade monetária mundial. Um novo genocídio contra o MST dando acentuados pontos na horrenda crise de violência disseminada pelo País.
Ele ali. À espera de que lhe dessem uma palavrinha em prol de quase nada. Uma coisa quase à-toa, mas que, manda a civilidade humana, somente se faça com a anuência e o conhecimento de quem tem a prerrogativa do uso do sim e do não.
Ardia um sol de pouco mais de meio-dia de um verão inteirado. Sua espera fazia algum tempo. Varara todo o jornal com aturadas leituras de alguns artigos e noticiários. E ainda estava na condição de espera.
Então ficou um tempo, talvez tão extenso, senão maior, ao que havia dedicado ao jornal, refletindo nas razões reais por que não desistira ainda de manter-se naquela situação. Não se tratava de algo urgente. Do qual, todavia, não podia desistir. O transcurso de sua condição cidadã exigia-lhe superar essa etapa. Ir embora depois de mais do que tolerável espera, seria uma forma de protesto, uma manifestação de indignação. Fora mais do que suficientemente disciplinado ao, imperturbavelmente, manter-se na condição dos comuns dos mortais. Demonstrava a quem visse (e muitos e muitos o viam) o exercício de não requerer deferências. Suportava a submissão à fila disciplinarmente. Ainda que ela não houvesse. Fazia de conta que sim. A demora acontecia em razão de ter à sua frente todo aquele pessoal inexistente.
A movimentação rotativa dos funcionários fazia-os vê-lo ali ainda como chegara. Há mais de hora. Mais. Transpareciam mais ansiedade e intranqüilidade pela imutabilidade da situação do que ele mesmo talvez.
Ao comum e reiterado, expresso por um sorriso mais nervoso que espontâneo, “ainda doutor”?, respondia com um gesto de ombros e face que se poderia traduzir por “ainda, fazer o quê?”
Foi quando, ao remexer na pasta, trocando o jornal por um livro, viu a certa distância, no meio de um espaço aberto entre um pavilhão e outro, onde o sol a pino incidia pleno, no chão tórrido, uma andorinhazinha, habitante dali, se debatendo.
O olhar esqueceu-se absortamente na andorinhazinha. Ela parecia convulsa em desesperante agonia. E aquilo lhe parecia ser mais desesperador, por dar-se em sob sol tamanho. Estava todo tomado por aquela pesarosa agonia e resolvera, impulsivamente, tirá-la do escaldante calor.
Aí anunciaram que era esperado, podendo então entrar. Pediu que lhe fosse, agora, concedidos alguns minutos para que socorresse a pobre moribunda. E sem mais, foi à andorinhazinha, onde teve baita surpresa.
Em vez de agonia de morte, o que achou foi um grande ritual de acasalamento. Duas andorinhazinhas faziam escancaradamente amor. E sob o sol talvez por mais espicaçante. Riu de alegre alívio.
Tornou ao seu posto e foi notificado que o Senhor tinha congestionada agenda, não podia tê-lo esperado coisíssima nenhuma e fora para outro compromisso.

Sucessídio

Sucessídio
Data 23/nov/2004

     Lera e ouvira. Mais ouvira do que lera que muitos dos “impérios” empresariais ou financeiros vieram do nada. No princípio, eram simples atividades com que o cara defendia a vida sua e da família com dificuldade. Mas determinação, empenho, organização, economia e modestos e progressivos investimentos.
Uns poucos exemplares do mito do trabalho dedicado como gerador de riqueza cumulativa e transformadora. A irreversível impulsão capitalista. Ampliar. Aprimorar. Atualizar. Se não, sucumbir. Que atrás vem gente!
Coisa da lei de mercado. Ser ou ser. Nada que não seja bens de capital é a solução. Nada resolve. Amor ou ódio; consternação ou piedade. O capital não é provido de neurônios afeitos a captar sensações dessa natureza.
Todavia, tem-se nesse tipo de empreendimento o desenvolvimentismo plausível. Que enaltece seus precursores e os que prosseguem mantendo-se na mesma linha de conduta, primando pelos ideais filosófico-capitalistas dos que tudo começaram. Crescer com dignidade. Enriquecer-se pelo trabalho incansável. Auferir o lucro honesto. Advindo de operações e transações financeiras limpas, claras, aprovadas e consagradas pelas leis do mercado. Dar aos trabalhadores, aos operários da empresa toda a assistência e tratamento que os fizessem sentir-se seguros, confortados, satisfeitos em sua condição de indivíduo bem empregado, com salário condizente e compatível.
Tratava-se de algo que dentre outras coisas dava tranqüilidade. Paz de consciência. E sensação de engrandecimento. Principalmente ao se levar em conta o que vinha sendo exposto cada vez mais e sem término com o advento e estabilização do sistema democrático de governo.
Progressivos casos de altos negócios transacionados em ilicitudes inquestionáveis. Manipulações escusas de dinheiro e bens públicos em favorecimentos particulares, gerando enriquecimentos rápidos onde a ausência de trabalho é a maior evidência. Instituições financeiras com seus lucros vertiginosos expandindo seus domínios. Ou tendo socorro governamental aos seus fracassos operacionais.
Assim vistos e comparados, os resultados de seus sãos negócios eram exitosos. O que lhe dava a convicção de empresário justo e contributivo.
Então, não tinha dúvida: a estupefação extrapolaria o terreno de âmbito familiar. Ganharia várias outras esferas sociais. Que não quererão admitir que um empresário de sua envergadura tivesse motivos para tal loucura. Sucessos. Negócios em expansão com êxitos evidentes. Filhos saudáveis e de bons hábitos e procedimentos. Não havia o mínimo rumor de quaisquer situações que desabonassem quem fosse. Empresa com suas contas em dia. Os salários de seus empregados. Finar-se assim um cidadão desse como um Getúlio Vargas sem nenhuma das razões daquele?
Amargurava-o que fosse assim acontecer. Todavia, sabia muito bem que tudo também acabaria assim se esgotando, pois que a causa daquele seu ato teria ido com ele.

Expurgo

Expurgo
Data 12/nov/2004

     Há anos assim vivia ali. E bem garantindo suas economias. Esteio dos seus, aos quais por obrigação e amor servia. Não merecera da parte de ninguém objeção, admoestação que fosse por isso. Riscos é próprio de quem está vivo. Viver é muito perigoso, filosofou acertadamente Riobaldo. E adágio popular, muito antes, já havia estatuído que quem não arrisca, não petisca.
Fora uma opção. A muitos, disparatada. Ninguém pôde entender, durante um bom tempo, como um cara com tal formação decidira por uma vida daquela. Difícil compreender.
Desfeitas as previsíveis desconfianças: fuga por motivos estereotipados – crime, roubo, subversão –, vieram as inventivas, algumas tendendo a invectivas. Mas o tempo, diz outro adágio, é o melhor remédio. E ele testemunhou ao lugar que as hipóteses e invectivas estavam desmentidas.
Tratava-se mesmo, para manter uma justificativa conformadora à opinião pública, de um sujeito opiniático. Decidira por aquele tipo de vida. Era esquisito. Todavia, tudo claramente consabido, o lugarejo é que, na verdade, mais ganhara. Pois passara a ter um privilégio. Um médico somente ali para eles. Vivendo do pouco que aquela pobreza quase absoluta podia lhe retribuir. Um médico dedicadíssimo. Pachorrentamente atencioso. A mesma e visível conduta profissional com um pobretão era dispensada a um remediado ou, poucos, mais abastado. Ousado em algumas ocasiões. Prudente e determinado noutras. Casos complicados, logo solicitava à prefeitura a remoção para a cidade grande, lugar de recursos. Um médico apaixonado. A medicina como a meta máxima de sua razão vida. Preventivo: cheio de orientações – não pode; evite; modere; use à vontade. Curativo: prescrições, acompanhamentos, tratamentos, encaminhamentos. Estudioso: era notório que comprava muitos livros, que ia a congressos.
Quando a ditadura militar apodreceu por completo e se despencou, e as eleições aconteceram, correu que tudo aquilo era por uma candidatura imbatível a prefeito. Vieram as eleições. Não se candidatou. Não apoiou candidato algum. Perguntado, dizia ser necessário eleger a justiça; a garantia de liberdade, de direitos e obrigações iguais. Alijar a corrupção, o patriarcalismo, o nepotismo, o favoritismo, o populismo; combater a violência; difundir a solidariedade, a garantia de escolaridade a todos. Falava assim, quando perguntado em seu modesto escritório.
Nos fins de semana, isolava-se em sua casa, construída à beira do rio. Dali, avistava o pôr-do-sol por trás das ilhas que o imenso rio continha. O espraiar-se da lua no gigantesco espelho d`água. Àquelas ilhas também assistia apaixonadamente. Prescrevia formas de organização: o uso da fossa séptica; o tratamento da água; a convivência com os animais domésticos: a não-poluição do rio.
Quando a sua secretária chegou e o encontrou emborcado sobre sua mesa de trabalho, varado de balas e o sangue escorrido já escurecendo, foi uma estupefação geral.
Durante o velório e no enterro: multidão; consternação total; choros convulsivos.
Depois, ficou a especulação, a investigação e a orfandade estampada em milhares de faces.

Circulo de leitura

Circulo de leitura
Data 08/nov/2004

     Fora arrebatada pela leitura de livros por dois apaixonados leitores. Um sua professora da terceira e quarta série: dona Amália.
Numa aula de redação (em realidade toda a primeira metade do período). Talvez o gosto que tinha por ler e escrever facilitou para que logo fizesse sua composição.
Recebera o devido visto com o apontamento de alguns elogios. A classe continuava absolutamente em estado de composição. A professora em sua mesa. Lia concentradamente. Às vezes, por instantes, leitura suspensa, olhava o silêncio e mudez da classe. Parecia satisfeita.
Então também ela, que não conseguiria entregar-se ao nada, assacou da bolsa “As caçadas de Pedrinho”. Bem escoriado. Nódoas de uso por mãos nem sempre muito limpas. Empréstimo que entusiasmado lhe fizera seu Acácio, o outro.
Foi numa conversa mais prolongada. Enquanto ele ajeitava os jornais num canto do carrinho. Noutro, as latinhas que amassava antes com uma forte pisada. Noutro, as garrafas plásticas. Ela e seu Acácio descobriram que tanto uma quanto o outro gostavam muito de ler.
Ela não disse, mas disfarçadamente ficou perplexa. Um catador de papel que sabia ler e gostava. Ele confessou não somente ler aqueles jornais velhos como recortar passagens que o tocavam, para vez em quando tornar a ler. E mais confessou. Daquele parco ganho, tirava algum para comprar no sebo um ou outro livrinho, que lá apreciava nos sábados de tardezinha e nos domingos de manhãzinha.
Onde encontrara “As caçadas de Pedrinho”. Que lera com comoção. Pois rememorara a sua infância de roça. O pai meeiro. Ele ajudava nos serviços, mas tinha suas folgas. Nelas fazia suas caçadas e pescarias.
Os livros dela eram os da biblioteca do avô. Um paraíso. Embora houvesse lá todo “O sítio do pica-pau amarelo”, tomou as “Caçadas de Pedrinho” de Acácio. Em contrapartida emprestou-lhe “As mil e uma noites”.
Assim nascera entre eles aquele relacionamento de leitores. A cada ida de Acácio em busca do seu “ganha-pão” travavam a conversação e efetuavam seus empréstimos mútuos.
Absorta nas “Caçadas de Pedrinho”, despertou com dona Amália atrás reparando. Satisfatoriamente informada, dona Amália agradou-se com a idéia e quis também compartilhar daquele intercâmbio.
Acácio passou a visitar dona Amália. Mais uma fonte de suas rendas e de suas leituras. Dizia-se honrado com aquelas distintas generosidades.
Dona Amália pôde confirmar as impressões de sua aluna: seu Acácio era ótimo. Um catador de papel original, amante de leituras e agradabilíssimo conversador.
Desde então, era uma aluna que conversava e emprestava livros com seu Acácio e com sua professora, que conversava e emprestava livros com sua aluna e com um catador de papel, seu Acácio, que conversava e emprestava livro com uma estudante e com uma professora, dona Amália.
O ciclo ia assim. Até que um dia a professora e a aluna se confirmaram uma a outra que há dias nenhuma era visitada por Acácio.
Um mês já, não eram visitadas por Acácio. Meses já, não eram visitadas por Acácio. Nunca mais foram visitadas por Acácio, de quem sabiam tão-somente que defendia a vida catando papel e era perdidamente apaixonado por livros.

Cena popular brasileira

Cena popular brasileira
Data 05/nov/2004

     Acordou com estrondos de coisa sólida sendo despejada em algum recipiente de lata ou zinco. Algo assim. Tais estrondos ocorriam perto da janela do quarto em que dormia. Pausa. Estrondo. Pausa. Estrondo. Seu tempo de sono estava acabado. Ficou ainda um pouco mais. Os sentidos fixados no estrondo; pausa; estrondo; pausa; estrondo.
Rotina matinal executada. Café da manhã cumprido, durante o qual soube tratar-se de umas remodelações por que passava o quintal nos fundos da casa, para o qual dava a janela do quarto em que dormia.
Era véspera de feriado. Estava a passeio, usufruindo um daqueles tais finzões de semana. Fora dar uma olhada em que consistiam as transformações por que passava o quintal.
Encontrou um único executor da obra. Logo o autor dos estrondos. Estes resultavam do impacto de pedaços de concretado que o homem quebrara de uma faixa do quintal e atirava numa carriola de mão. Ali, o quintal retornara a terra, onde seria construído um ajardinado.
Cumprimentaram-se rigorosamente com um mútuo bom-dia. Silêncio. Ele ficou olhando o trecho quebrado cujos cacos ainda estavam sendo removidos. O homem permaneceu descansando escorado no cabo da pá. Depois, tirou do bolso da calça um maço de cigarro que parecia vazio. Consultou o invólucro com o indicador. Encontrou um cigarro meio desalinhado. Amassou o maço vazio e atirou-o a um canto do quintal. Acendeu o cigarro sem se preocupar com realinhá-lo. Guardou o isqueiro no bolso da larga e longa camisa que ia sobre a calça mal acobertando a protuberante barriga. Deu uma baforada, olhando para ele e dizendo que era o premero. É três maço por dia. Daqui a pouco, hora do rango, compro o segundo. Diz que faz mal. Oi eu, ó – mostrando, com a mão direita gesticulando, o seu perfil –, nunca tive doente (ao retomar o trabalho algumas vezes tossiu uma tosse acatarrada).
De fato era um homem forte. Alto. Robusto. No trecho do quintal em que trabalhava persistiam três ou quatro tocos de arbustos muito resistentes. No entanto, a força que imprimira com seu machado acabou por extirpá-los todos.
Estava suado. Dos cabelos bastantes, acobertados por chapéu de feltro puidíssimo, bagos de suor escorriam para a barba farta de um rosto largo e franco.
Após a extração dos tocos, novamente descansou ao cabo da pá, antes de recomeçar a remoção dos entulhos. Acendeu um cigarro. Olhou para o trecho já quase tornado pura terra. Disse terra boa. Dá umas alface e almerão, umas couve. É ou não é? Bateu com a pá nas extremidades do concretado. Agora faço uma cinta de tijolo e cimento fora a fora. Evita a infiltração da chuva. Fica um servicinho bom. É ou não é? O senhor é de fora? Ah! Conheço. Comprei uns boi bom lá. É. Tive boi bom mesmo. Tive sítio. Perdi tudo. Os home não deixa, né? Isso é só pra eles. É ou não é? Mas não reclamo. Faço de tudo. De tardezinha, tomo minha cachacinha. Mais tarde, janto e durmo. Não me intrometo com a vida de ninguém. Tenho aquela carroça lá fora. Um bom burro. Vida apertada, mas honesta. É ou não é? Não. Cachaça é bom. Um pouco de álcool é bom. Todo home deve de beber um pouco. Muito faz mal. Mas não cerveja. Cerveja não é bom.
Tornou a silenciar-se. Acendeu outro cigarro. Mostrou o maço em que restavam mais uns poucos. Olhou o quintal. Dá uma bonita área. Churrasquera. Só que aqui fica caro. Vai troco. Vai uns bom troco. Eh! Olha, por falar nisso, me lembrei. Preciso acabar logo aqui. Pegar o troco com o menino aí, seu filho, né? E correr pagar a energia, senão fico sem ela nesse feriado. É assim. Com dívida da gente eles age rápido. É ou não é?