Mosca inazul

As mariposas e seus assemelhados vêm à lâmpada de centro única sobre a escrivaninha onde se entrega um sujeito à leitura ou à escritura. Os besouros das estações, sobretudo os primaveris e veranis, que, filhos prolíferos do aquecimento, pululam por onde quer que seja. Então, em noites dessas toda sorte de insetos, filhos dessas estações, infesta os ambientes e ficam dardejando em bêbados vôos de um canto a outro, tropeçando por quantos móveis se lhes deparam, sem que em nada lhes afetem a integridade física.
Decerto exercem-lhes sedução tamanha esses filetes em néon luminosos e lhes mentem a possibilidade de uma quentura que se furta, não correspondendo ao clarão da luz. E eles disputam-na. Mutíplices em porte, forma e cor. Zumbem alguns encorpados pelo espaço em vôos desastrados cujas aterrissagens quase sempre decorrem de audíveis colisões. Os pequeninos vão mais a distância. Talvez com receio de que tanta claridade os afete. E destes alguns picam como pernilongos que não são. Doídas mordidas que quase sempre lhes resultam em morte
Nessas ocasiões, o incomodado leitor ou escrevinhador demanda em estratégias que possam despistar incovenientes intromissores. Aciona o ventilador de teto. Acende uma lâmpada com maior potência de luz em um outro canto. Quando mais impaciente, apela aos aerossóis mata-moscas e espargem veneno pelo espaço.
Dado que o calor é tanto, às escâncaras têm de ficar janelas e porta. Então entram ali, quase sempre em lusco-fuscos, sabe-se lá por quê, seres não necessariamente amantes da luz noturna. Certo colibri, certo bem-te-vi que depois não conseguem sair. Certos pardais, quem sabe a vistoriar a possibilidade de novos beirais. Borboletas, preta, amarela, a enorme azul asa-delta, a alaranjado-abóbora de pontilhados preto e branco feita. Já houve em seu esbravejante vôo negro frisado de amarelo a visita de mamangaba. E também já esteve a mosca azul.
Esta chegou pousando no monitor. E foi amor à primeira vista. Encantou-se de tal modo com a luz-tela, que pareceu querer ficar para sempre dela. Esquadrejou todo aquele ludibriante retângulo. E depois de tudo perscrutar (ou beijar) vagarosamente, fixou-se no canto esquerdo azul bem mesmo sobre a barra de horário. E ali parecia adormecida. E como não a incomodaram, dali não saíra, mesmo depois que tudo se apagara. No outro dia, lá estava ainda, apenas com a diferença de que era já cadáver.
Mas o inusitado se fizera outro dia. Afinal o admissível e o inadmissível até que por aquelas amplas janelas dadas ao quintal podiam irromper haviam acontecido. Pois ainda não. Certa noite que já ia meio alta, tornando ao escritório em que costumeiramente ficava lendo ou escrevendo, viu-a mais à sua direita pousadamente posta em sossego. Apenas avançou alguns passos lá dela, quando ele acomodou-se devidamente à mesa.
Não era outra mosca azul, não obstante lhe tivesse vindo imediatamente o episódio com aquela. Incrível. Tratava-se de uma mutuca. Olhos grandes como aqueles. Mas feia, fosca, nada azul. Nunca mais vira essa mosca. Ficou mirando-a entre embevecido e saudoso. Fora arrebatado pelos seus tempos de banhos em rios, de currais com gado e cavalos, o habitat dela. Por ali zumbem. E a fêmeas, granadas, ferroam doído animais ou gente sugando o sangue.
Inseto de convivência de seu universo de infância e adolescência. De repente ali em sua mesa de homem maduro e já andado. Quieta. Estática. E de uma calma familiar surpreendente. Ali completamente imóvel, durante muito tempo depois que ele se abancara de novo à mesa. Não a movera o instinto do cheiro de sangue próximo. Madrugada em curso, ela ali imóvel. Em verdade adiantara-se um pouquinho mais sob as proximidades de uma folha de jornal soerguida, como se a incomodasse muita luz. Como somente as fêmeas são hematófagos, por certo devia tratar-se de um espécime macho.
Deixou-a ficar tal como estava. Cerrou janelas e porta. Foi dormir. De manhã ao descerrar tudo para permitir que o ar fizesse companhia à luz do dia que as vidraças transpusera, encontrou-a na mesma intacta postura. Mas, tal qual a mosca azul daquela vez, tratava-se tão-somente de uma mutuca-cadáver.

Rala Bola

Data 12/jan/2006

1958. Era tempo de Copa. Copa em que o Brasil pela primeira vez (e daí para todo o sempre até agora) chamaria a atenção do mundo para si. Conquistava o campeonato, esconjurando assim a chaga viva da tragédia do Maracanã de 1950, que lhe impusera o Uruguai.
Começava a surgir o país do futebol. Que se sobreporia a todos os outros. Futebol efervecente. Que brotava pelas várzeas, nos campinhos de terra batida e traves retangulares. Um dos raros casos em que a glória não surge do meio afortunado, da confortável riqueza. O craque vingava do infortúnio, do desconforto da pobreza.
Pois foi então que os arianos suecos assistiram e deram a ver e a ouvir ao mundo ao Nascimento do futebol maior. Que vinha de um país periférico, de descendência bugra, negra e malária.
Era um futebol carnavalizado. Jogadores passistas. Os que compunham a comissão de frente eram verdadeiros mestres-salas. Todos dividiam, com elegância e maestria, sua porta-bandeira ao ritmo de um bailado grandemente contrário ao cânone estatuído pela sobranceria inglesa. Futebol moleque Pelé. Futebol de um incerto Mané ziguezagueando lá na ponta direita, pondo os gringos na roda. Visível futebol deboche. Quebrando o esquematismo de um futebol burocrático e emparedado: o futebol de botina.
E lá vinha Garrincha com seu andar desengonçado, com suas jingas ludibriantes, apavorando suecos, russos, alemães etc. visivelmente enfurecidos e humilhados. Aquele Mané ninguém de lá do mato virgem, mancomunado macunaimamente com aquele negrinho endiabradamente atrevido e debochado como o fazem os tais sacis de lá.
E Pelé e Mané deitaram e rolaram sob o uníssono e estrondoso troar do, desde então universal, olé, olé! Foi a consagração e a assinatura do mundo curvando-se à superioridade inequívoca de um futebol vivo, imprevisto, singularmente inimitável, calcado na compulsiva e peculiar inventividade de infindo improviso.
Oito anos depois, superados alguns percalços, este futebol que já então assumira os caracteres de arte e magia, como é próprio da grande arte – intuição, invenção e técnica – fora ao México na persecução da apoteose: a glorificação.
Todavia, para decepção de muita gente, este futebol chancelado por Pelé e Mané foi ficando europeizado. Foi ficando cada vez mais futebol burocrático. Futebol de resultado. E o futebol brasileiro foi ficando cada vez mais submetido aos esquemas táticos. Pelés desapareceram. Mané Garrincha tornou-se a Ursa-maior e virou saudade. Os ronaldos foram absorvidos pelo futebol eurodolarmente de resultado.
Por certo, a síndrome de 1982 desaguou nisso. O mágico futebol brasileiro daquela vez novamente encantara. Todavia não vencera. E então o mundo já vivia o lema de que somente convence, não importa como, quem vence. Vencer e vencer.
E o futebol brasileiro foi ficando europeu. A tal ponto que hoje, como se sabe, os jogadores do time brasileiro são todos de time europeu. São oriundos do Brasil, mas jogam na Europa. E foi exatamente isso o que se viu terça-feira passada. Não era o Brasil jogando. Eram dois times europeus. Um futebol monótono, força física contra força física. Nenhuma jogada brasileira. Cautela contra cautela. Enfim, o burocrático milionário futebol a que pouco importa convencer. Importa vencer. Importa o resultado.
Disseram isso, por certo, a Ronaldinho Gaúcho e a Robinho, os que, quando podem, demonstram conter o gene Pelé/Mané. Que os malabarismos, os dribles desconcertantes, os improvisos ficassem apenas para os treinos-cena midiáticos.
Parece que os gringos, que sempre têm deste país tudo açambarcado, estão (por último?) apossando-se do futebol. Não, todavia, para dele se apoderar e etiquetá-lo como made in, mas para descaracterizá-lo. À medida que o vai reabsorvendo, vai tornando-o  nova e inteiramente anglo-saxão.

Uma incerta mosca azul

 

Data 12/jan/2006

A mosca azul decerto perdida e atraída, como a mariposa e os outros ínfimos insetos de luz, surgiu, em seu vôo turbinado, pondo-se a circundar a lâmpada.
Tratava-se de um fato singular. Pois do pouco que dela sabia, tudo girava em torno da luz do dia. Tida e havida pela sabedoria popular como a varejeira. Com seu zumbido peculiar zunindo velocíssima pelo ar à cata do mínimo cheiro de matéria morta decompondo-se. Parece, pois, que o mórbido é que lhe sustenta a vida.
Ela viera de onde, sendo plena noite fechada, sem lua, estrelas altas, escuridão da noite acentuando sua negridão e, ali, o único cheiro forte sendo o dos livros?
Entrara-lhe pela ampla janela um vertiginoso zumbido que, somente depois, a luz da lâmpada de mesa circundada permitiu vislumbrar a forma de uma mosca.
E, em um dos seus curtos repousos, pôde saber que se tratava de uma mosca azul. Uma varejeira? À noite!? Então, pôs-se ele a voejar, em retrospecção, numa velocidade oposta à da mosca, seu cotidiano noturno, já meio longevo. Em nenhuma noite vivida houvera uma mosca azul. Muitos, os insetos. Os cíclicos: a aleluia, alguns besouros, os mosquitinhos. Os mais comuns, mais freqüentes: os mosquitos domésticos, as formigas, uma barata. Os mais raros: uma desgarrada abelha, uma perdida borboleta, uma conturbada libélula. E próprios da noite: as várias espécies de mariposa – miúdas, graúdas, medianas. Nunca, entretanto, uma mosca azul feito aquela.
Voou. Voou. E num desses vôos encontrou a tela do computador. De novo voou. Agora em torno da tela. Tornou a assentar. Ficou por alguns minutos ali, estática. Os olhões esverdeados luminosos. Quem sabe, examinado as imagens. Sua tromba sugadora procurando experimentá-las. Moveu-se um pouco para um e outro lado da tela. Tudo rapidamente. E logo alçou vôo de novo.
E assentou-se na parte anterior do monitor. Abaixo ainda do botão liga-desliga. Como se naquela luz mínima esverdeada houvesse encontrado uma companhia. Sim, porque ali se deixou ficar. Parecia completamente à vontade.
Ele a um palmo dela, que se mostrava segura e indiferente. Continuava a contemplá-la, desconhecendo-se a si mesmo, cuja imobilidade advinha dessa total concentração na mosca. Talvez porque fosse noite, e ela, imóvel, abrangida pela luz da iluminaria era bem diferente da mosca azul já tantas vezes vista. Mas não assim olhada.
A memória trouxe-lhe várias situações em que a viu. Um boi. Um cão. Um gato. Um sapo. Animais mortos expostos em pastos, terrenos baldios, ruas, estradas. Putrefazendo-se, fedendo, empestando o ar e recobertos pelas azuis reluzentes varejeiras que os roíam.
Mas também lhe trouxe a memória imagens outras. Em certos campos de concentração de famintos, em Biafra, em Bangaladesh, esqueléticas, inertes, estendidas no chão, amontoadas, no regaço ou no colo de sua mãe, crianças, ainda vivas, sendo roídas por azuladas moscas.
E lhe trouxera ainda, a memória, costumeiras situações em que comensais felizes, ante a farta mesa de apetitosas comidas, em lautos almoços ou jantares, desesperarem-se, quando súbito irrompe, a mil, uma ou mais delas atraída pelo inebriante cheiro.
Ele mesmo, em situações desta, com a família, foi caçador irado delas. Não se apaziguando, senão exterminando-as, enquanto não as enxotasse de vez. E se a atingisse, deixava-a como o poleá do poema de Machado a deixou: “Rota, baça, nojenta, vil”.
Mas, ali, não se pôs a dissecá-la como fez o poleá. Pôs-se a vê-la que, com suas patas dianteiras, limpava-se metodicamente. Limpava os belos e grandalhões olhos esverdeados que se tornavam um e enorme, quando olhavam para um só lado. Limpava a tromba. Depois as patas traseiras limpavam as asas que à luz fulguravam. Depois as patas traseiras limpavam o corpo. Por fim, depois de muito limpar-se, acomodou-se um pouco mais abaixo, como que se escondendo da luz. Ali se aquietou. Por certo entregava-se ao justo sono de uma mosca azul.