Rala Bola

Data 12/jan/2006

1958. Era tempo de Copa. Copa em que o Brasil pela primeira vez (e daí para todo o sempre até agora) chamaria a atenção do mundo para si. Conquistava o campeonato, esconjurando assim a chaga viva da tragédia do Maracanã de 1950, que lhe impusera o Uruguai.
Começava a surgir o país do futebol. Que se sobreporia a todos os outros. Futebol efervecente. Que brotava pelas várzeas, nos campinhos de terra batida e traves retangulares. Um dos raros casos em que a glória não surge do meio afortunado, da confortável riqueza. O craque vingava do infortúnio, do desconforto da pobreza.
Pois foi então que os arianos suecos assistiram e deram a ver e a ouvir ao mundo ao Nascimento do futebol maior. Que vinha de um país periférico, de descendência bugra, negra e malária.
Era um futebol carnavalizado. Jogadores passistas. Os que compunham a comissão de frente eram verdadeiros mestres-salas. Todos dividiam, com elegância e maestria, sua porta-bandeira ao ritmo de um bailado grandemente contrário ao cânone estatuído pela sobranceria inglesa. Futebol moleque Pelé. Futebol de um incerto Mané ziguezagueando lá na ponta direita, pondo os gringos na roda. Visível futebol deboche. Quebrando o esquematismo de um futebol burocrático e emparedado: o futebol de botina.
E lá vinha Garrincha com seu andar desengonçado, com suas jingas ludibriantes, apavorando suecos, russos, alemães etc. visivelmente enfurecidos e humilhados. Aquele Mané ninguém de lá do mato virgem, mancomunado macunaimamente com aquele negrinho endiabradamente atrevido e debochado como o fazem os tais sacis de lá.
E Pelé e Mané deitaram e rolaram sob o uníssono e estrondoso troar do, desde então universal, olé, olé! Foi a consagração e a assinatura do mundo curvando-se à superioridade inequívoca de um futebol vivo, imprevisto, singularmente inimitável, calcado na compulsiva e peculiar inventividade de infindo improviso.
Oito anos depois, superados alguns percalços, este futebol que já então assumira os caracteres de arte e magia, como é próprio da grande arte – intuição, invenção e técnica – fora ao México na persecução da apoteose: a glorificação.
Todavia, para decepção de muita gente, este futebol chancelado por Pelé e Mané foi ficando europeizado. Foi ficando cada vez mais futebol burocrático. Futebol de resultado. E o futebol brasileiro foi ficando cada vez mais submetido aos esquemas táticos. Pelés desapareceram. Mané Garrincha tornou-se a Ursa-maior e virou saudade. Os ronaldos foram absorvidos pelo futebol eurodolarmente de resultado.
Por certo, a síndrome de 1982 desaguou nisso. O mágico futebol brasileiro daquela vez novamente encantara. Todavia não vencera. E então o mundo já vivia o lema de que somente convence, não importa como, quem vence. Vencer e vencer.
E o futebol brasileiro foi ficando europeu. A tal ponto que hoje, como se sabe, os jogadores do time brasileiro são todos de time europeu. São oriundos do Brasil, mas jogam na Europa. E foi exatamente isso o que se viu terça-feira passada. Não era o Brasil jogando. Eram dois times europeus. Um futebol monótono, força física contra força física. Nenhuma jogada brasileira. Cautela contra cautela. Enfim, o burocrático milionário futebol a que pouco importa convencer. Importa vencer. Importa o resultado.
Disseram isso, por certo, a Ronaldinho Gaúcho e a Robinho, os que, quando podem, demonstram conter o gene Pelé/Mané. Que os malabarismos, os dribles desconcertantes, os improvisos ficassem apenas para os treinos-cena midiáticos.
Parece que os gringos, que sempre têm deste país tudo açambarcado, estão (por último?) apossando-se do futebol. Não, todavia, para dele se apoderar e etiquetá-lo como made in, mas para descaracterizá-lo. À medida que o vai reabsorvendo, vai tornando-o  nova e inteiramente anglo-saxão.