A guerra está entre nós

Sentiu um gosto ruim. Gosto de impotência. Gosto amargo de estar cumprindo uma rotina com a qual se mantém e mantém os seus e que julga ser de utilidade pública, mas que de repente lhe parece inútil. Sabor de trabalho e disciplinas vãos.
Como todos os dias, manhãzinha já, ali a postos observando-os chegarem. Vêm, como ele, movidos pela mecânica da rotina. Mal têm consciência do que e do por que assim agem. Sabem, melhor, repetem o que todos dizem. Dizem os governantes, dizem os pais, dizem os avós, dizem os demais familiares. Então é ir para a escola “para ser alguém na vida”.
Á lacres, efusivos, risos, gritos, falando alto, vão entrando em grupos, a pé, em bicicletas, contando fatos, irônicos, humorísticos. E enquanto os observa a frase fica circundando sua cabeça, feito círculo vicioso. Frase estereotipada ainda com um certo vigor. Uma cômoda e pronta justificativa para se ir à escola.
E de imediato lhe vem à cabeça outra, não tão conhecida talvez. O verso machadiano. E então, parafraseando-o, se pergunta se teria mudado ele ou a escola. E logo se reponde que em verdade mudaram ambos. Mas a escola fora arruinada. Para responder aos organismos internacionais, os governos tornaram as escolas públicas oficiais com altas freqüências permanentes, baixaram as reprovações ou repetências aos níveis aceitáveis por aqueles organismos. Porém, assim o fez, e faz, mantendo um sistema de formação obsoleto e incapaz de qualificar e habilitar de verdade. Conseqüências são os humilhantes resultados das avaliações externas nacionais e internacionais.
Se passar pela escola continuasse sendo um lugar que leva as pessoas a “serem alguém na vida”, como de algum modo outrora isso fora verdade, não obstante as peculiaridades de cada tempo, e que também de certo modo continua sendo nas escolas particulares que se mantêm como centro de excelência de formação e informação, o ensino público oficial não seria essa terra de ninguém, onde cabem todos os experimentalismos, toda a moda da hora e da vez.
Seria outra coisa. Seria a utopia possível. Seria um sistema estável, seguro, passível de naturais transformações decorrentes das evoluções humana e social. Ali, sim, as crianças, os adolescentes, os jovens estariam vivenciando uma formação e um desenvolvimento garantidos por um sistema de ensino em que plena ou satisfatoriamente as informações, os conhecimentos, as experiências seriam trabalhadas, orientadas, direcionadas, acompanhadas por profissionais com formação, atualização e remuneração satisfatórias, com ambiente de trabalho e condições de atuação adequados, o que favorece e motiva o desempenho profissional.
E enquanto os alunos, conduzidos pelos sinais emitidos pela campainha, dirigiam-se à sala de aula, fora, vagarosamente, ele também se dirigindo ao seu posto de trabalho. A cabeça ainda fixa nas reflexões que fazia. E ao completá-las, concluíra que, todavia, a situação deteriora-se a ponto de chegar àquilo: a ordem social, as garantias de uma vida livre e sã à beira do caos. Havia mais que um ar de podre naquela república do futebol e do carnaval.
As organizações clandestinas de poder sustentado pelos tráficos, pelo crime, assaltos e seqüestros novamente declaram guerra contra o poder constituído pela legalidade em nome de uma democracia formal, sob a qual outros tipos de assaltantes, outros tipos de organizações criminosas (por certo, historicamente, bem mais antigos do que aqueles) agem voraz, despudorada e impunemente.
Sob esse fogo cruzado ficam os trabalhadores de um modo geral (braçais, intelectuais, empresariais) produtores da riqueza, que pagam pesados e múltiplos impostos de toda ordem e que, como se isso não bastasse, vêem-se ainda à mercê dos assaltantes em sua casa ou apartamento e logradouros públicos.
Cidadão brasileiro! Arrematou o pensamento, lembrando-se daquele personagem de Chico Anísio. Quando os criminosos organizados se desentendem titãnicamente, correm para suas tocas, ficando a imagem sinistra de uma das maiores cidades do mundo completamente deserta, evocando aquela imagem de Bagdá na iminência de ser atacada pelas tropas de George Bush.

O vinho do poder

A taça de vinho. A noite sendo tomada pelo frio. Fazia-se cada vez mais proeminente o inverno. O jornal aberto em cujas páginas políticas pululavam notícias, fatos, depoimentos. O país passando por novos percalços. Mais de vinte anos depois de restabelecimento da democracia liberal, ainda se conduzindo por terreno escorregadio, de planuras e buracos, de ladrilhos e lamas.
Inumeráveis e multifacetadas cenas de terror e dor passadas na construção de ansiadas liberdades democráticas. Que pareciam ainda longe do idealizado. Dessas muitas cenas, uma, agora, ali, evocara, cujas elucubrações políticas, partidárias e eleitorais vararam madrugada adentro sustentada por muitas garrafas de vinho.
Era um tempo em que reconstruções precisavam ser feitas. Cada qual fizesse a seu modo. Conforme suas possibilidades. Cada qual desse de si seu quinhão. A causa pedia um pouco de desprendimento. Valia o que fosse feito com entusiasmo, dedicação e responsabilidade. Tudo para que se pudesse reinaugurar, ou inaugurar um estado democrático estável.
A instabilidade de um país que nunca parecera ser efetivamente confiável a seus próprios herdeiros. Estes mesmos talvez se sentissem frágeis. Ainda no fosso da impotência. Nada consistente e verdadeiramente nacional, patriótico nele houvera se desenhado como o rumo, o caminho para seu lugar.
Até ali não chegara a terra de país arrasado, porque, de fato, incomensuráveis são os filões de sua riqueza. Por mais que o tenham espoliado; por mais que tenha sido submetido a terríveis sangrias; por mais que tenha visto devastarem sua mata, envenenarem seus rios, exterminarem seus pássaros e animais; por mais que tenha visto o seu céu de nuvens e azul sempre pinturescos e o puro frescor de seu ares irem degradando-se em cinzas e putrescências; e que por muitos mares bravios tenha sido atormentada esta Ilha de Vera Cruz, esta Terra de Santa Cruz pela nobreza assim denominada e que a singeleza do vulgo preferiu chamar de Brasil, em que pese terrivelmente isso tudo, não sucumbiu, não soterrou.
Todavia, também não se melindrou em disparar o alarme, em acender suas luzes vermelhas. Tais sinais, ainda que brisas boas tenham perpassado, ainda que tenham surgido frescas garoas, ainda que fértil chuva e sol fecundo não a tenham esquecido, tais sinais continuam alarmando, continuam acesos.
Era, então, também uma noite de inverno anunciado. Eles eram três homens cheios de esperança com suas utopias muito semelhantes e vivas. Advinham de empenhadas ações de combate durante todo o período daquela ardilosa e destrutiva ditadura de décadas. Haviam trilhado pelas mesmas veredas na conquista do estado de direito democrático. Foram assembleístas. Foram debatedores. Foram grevistas. Foram aprisionados. Foram radicais. Foram marxistas-leninistas. Foram guevaristas. Foram diretas-já. Foram tancredistas.
A hora era de começar, fazendo a lição de casa. Urgia, mais do que nunca, que ali no município deles fosse inaugurado o estado de direito. Combinaram encontro em que debateriam como fincar o pau da bandeira que iria tremular a altíssona convocação para a cívica instalação da democracia pelas eleições que se anunciavam.
Encontro marcado para certa hora já ida da noite, pois que até ali estaria ainda cada qual em seu trabalho. O bar, que os teve sempre por bem-vindos, tratou de acantoná-los em certo lugar reservado, onde planeariam sua grande tomada da Bastilha. Chegara a hora do basta aos modernos coronéis antiprogressistas. Sob o mando desses senhores a cidade era uma ilha de atrasos cujas circunvizinhas estavam a décadas de progresso. A grande maioria da sua população estava gritantemente empobrecida.
E o vinho predileto aplacava a sede de justiça e progresso daqueles três mosqueteiros que conspiravam contra os opressores de sua espoliada cidade. Complexas questões de luta eleitoral foram delineadas. Madrugada ida. Garrafas de vinho esvaziadas. E todo eficiente trabalho emperrado num ponto. Eram três partidos que depunham à mesa de negociação quase tudo. Menos a condição de ser a tal cabeça-de-chapa.
E partidos ficaram. Cada qual com sua cabeça-de-chapa, permitindo assim que a tal cabeça antiga se mantivesse devoradora voraz e intocável. Enquanto os três outros, embebedados de si mesmos pela transformação do poder, continuariam voltando para casa de vinho tinto entupidos.

Ela foi dessas mulheres

Data 12/jan/2006

O inerme corpo dela, de tudo já distante. Agora todo de si mesma. Imóvel, naquele estado de coisa, de rocha, de concreto, de terra. Foi nesse instante, ante a consumação do impensável, que me dei conta da precisa grandeza de sua estada. Que sempre soubera do quanto ela fazia pelos seus, pelos outros, certíssimo era. Assim, precisamente, até então não sabia, como agora soubera, o quanto também para mim, por mim mais talvez fizera.
Moderna mulher. Pragmática, intuitiva e vocacionada educadora. E comprometida profissional da Educação. Assim fora numa atuação de inata servidora sem nenhum traço de servidão. E também como os tecidos, sabiamente bordava essa tessitura mais complexa que entretém vidas. E nesta, como naqueles, avultava a bordadeira nada limítrofe, que sabia ir além de um ponto fixo, agindo com versatilidade e desprendimento.
Sob seus cuidados, porque não os dispensava, vários e distintos estados. O de senhora dona de casa, apascentando marido e filhos. O dos correlatos familiares. Todos com determinação e suspicácia.
Performance capaz de adequar-se. Se amava as festas, onde conjugadamente versam o espontaneísmo, a polidez, a discrição, o expansionismo, tanto mais devotava-se ao fazer. As várias atuações de que decorria a construção do benefício. Tanto mais ao outro, que, especificamente na sua área de atuação, são os outros. Aos sujeitos em crescimento, a cuja formação cidadã dedicava o seu melhor.
Há homens e mulheres aos quais a inércia, mais que inimiga do corpo, o é do espírito. A imobilidade, quando lhes parece estar indo além do necessário repouso, impacienta-os, incomoda-os. São talvez acometidos de um indefinível sentimento de culpa. Como se aquilo esteja já caracterizando um estado que, verdadeiramente, abominam: a preguiça.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Nas quais ainda perdura estável o gene daquelas que estão para laborar, no sentido estrito que o étimo a este verbete confere. Parece carregarem atavicamente em sua estrutura psicogenética a conformação sociocultural de destinadas à condição precípua de servir. Seja à extraordinária capacidade de agirem como matriarcais donas de seu lar. Seja como inigualáveis matriarcas requisitadas pelos ramos familiares, que a elas recorrem como o mais dotado recurso humano para a resolução das constantes questões e conflitos.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Servir plenamente. Em quaisquer circunstâncias. Prontas a se dedicarem pelo outro; pelos outros. Dedicadas a vida toda a essa causa: os outros, os quais, quaisquer, vêem como seus.
E assim o são admiráveis mulheres modernas. De suas antepassadas decerto são profundamente admiradoras. Decerto têm-nas como mulheres sem as quais não haveria o hoje. Decerto reverenciam-nas como a matriz, a fonte da vida dada às vidas outras, suas próximas e semelhantes. Decerto, por isso, as amam incondicionalmente.
Todavia, conquanto assim sejam, já não poderiam mais a elas se igualarem, nem serem iguais a elas. E isso, sobretudo, para continuarem a laboração pela própria causa delas: a vida pela vida dos outros, seu próximo, seu semelhante.
Agora, para que essa mesma causa se preservasse, já não poderiam continuar pelas mesmas vias. Daí que, distintamente daquelas, refutaram, com iguais labutas, sem nunca deixarem de servir, a submissão. Sem nunca deixarem de ser muitas, sendo uma, rechaçaram a subserviência. Servidoras, sim, porém não mais serviçais. Servir, sim, porém não mais servis. Ser para os outros, sim, porém sem servidão. Verdadeiramente, senhoras perante senhores. Donas perante donos. Profissionais perante profissionais. Não fêmeas perante machos, mas, sim, verdadeiramente, mulheres perante homens.
Seguramente, ela compunha o quadro de mulheres dessas. Seu inesperado, abrupto, inimaginável desaparecimento, porque precocíssimo, causou profundo abalo em todos: os outros, esses que fomos sempre a sua causa.

Romance

A história da vida. A vida é história. A história são vidas. As vidas compõem a história. As histórias de vidas é que sustentam a vida na sua continuada descontinuidade a perpetuar-se em sua história.
E mais que contá-la, os homens, seu fundamental artífice, atuam na tessitura dos seus infindáveis e intrincados enredos. São seus personagens, cujas ações os fazem destacar-se ou anonimarem-se.
Estes últimos, quase todos, bravos operários, são as vigas mestras dessa descomunal ópera aberta. Têm a virtude da tolerância inesgotável, da esperança renovável e a certeza do perene perecimento por uma grandeza humana, única, que um dia finalmente há de ser. São assim, conquanto tudo viva parecendo contrariar esta não menos perene esperança.
Os destacados protagonizam eventos cujas causas e efeitos os sobrepõem e os imortalizam como heróis ou vilões. E assim o são não apenas por atuação, o são por omissões igualmente. E muitos são os omissos que posam como e passam por heróis. E muitos dos que se entregam de corpo e alma na construção de certas causas sociais, humanas, e menos pessoais, são dados como e passam por vilões.
Os conflitos, os atritos que os movem e os entrechocam, e os nomeiam, e os alardeiam como tais, têm causa comum: a condição humana. Numa invariante cujo arquétipo, por certo, é o perdido Paraíso. Concebido, mas não vivido. Prometido, mas não concedido. Um Paraíso a ser construído no tempo e espaço vividos: a Terra – início e fim de todas as coisas. Ou não. E sim um Paraíso perdido cuja conquista se aplica neste tempo e espaço – o terrestre, o início, e termina noutros, o céu – o fim.
Então os heróis-vilões que contracenam com os vilões-heróis agem, tendo em conta uma coisa comum cujos fins, todavia, são diferentes paraísos. Logo, fazem dos muitos comuns e mesmos recursos e meios usos e empregos heterogêneos.
E, em meio a isso tudo, o meio em que essas histórias acontecem, por certo, tendo como causa sua própria condição, mais que o grande espaço, é uma personagem tanto adjuvante, quanto oponente. Não se presta ao jogo de intrigas propriamente jogado por aqueles. Nem tampouco age como as anônimas personagens-operárias. Porém, parece que com tolerância, não passiva, tem admitido a convivência com aqueles outros todos personagens na conjugação de suas causas: a preservação da condição humana em consonância com a preservação da condição natureza.
Então a natureza não se retira como espaço (palco) desta história (espetáculo). Ao contrário, não obstante tenha se entregado à boa convivência, é indiferente ao conflito infindo entre os grandes protagonistas-oponentes que, por isso mesmo, têm sido dela mais oponentes do que comparsas. Ao contrário das personagens-operárias, ela tem reagido, o que complexifica ainda mais a trama urdida, tornando esta história uma (até quando?) perene obra aberta.
Por seu turno, o narrador está magistralmente em posição de absoluto distanciamento. Sua estratégia é o recurso de uma grande polifonia discursiva. Não narra a história. Deixa que ela se conte por si mesma. Que os múltiplos discursos, impregnados de sua ideologia, polemizem na contraposição de seus interesses.
Uma neutralidade narrativa talvez apenas estratégica mesmo, deixando assim que os narratários (espectadores, assistentes, ouvintes ou leitores), ante a crueza dos discursos que os querem persuadir, revoltem-se, saltem para dentro da história e atuem pela sensatez, cuja vitória será a salvação única é indistinta.

Leitura

Leitura é fonte. Instaura indimensionáveis venturas. Ensina a viver, apesar das indesejáveis pisaduras. Encaminha às mais impensáveis alturas. Expõe as espúrias criaturas. Dá feição às enrustidas imposturas. Semeia largamente incontáveis culturas.
A leitura é um trem portentoso a trilhar aclives, declives, curvas incríveis, paisagens inesgotáveis. Trem cujo passageiro, aceso em seus cinco sentidos, vai entre repousado e atônito.
Leitura assegura a imortalidade. Torna o findo um constante inacabado vivo. Leitura é uma senda a perdidos. A estrela guia apontando a entrada. Ou a saída. Um farol à nau perdida. A tábua a náufrago. Bálsamo para uma causa perdida. A chave de um enigma. A iluminura a certas angústias. O abalo de sedimentadas estruturas. O barulho à serenidade de um silêncio. Incômodos a certeza absoluta.
A leitura rompe com a ignorância. Atormenta as ditaduras. Fomenta a paixão pela literatura. Desvenda obscuros. Torna mais perceptível a formosura. Faz o conhecimento conquistar desenvoltura. Aperfeiçoa a convivência da diversidade. Expõe o podre, a lama, a falcatrua. Desencilha de pesados fardos.
A leitura exercita a língua. Afia a fala. Provoca o léxico. Instiga à consulta. Habitua à pesquisa. Incute a sintaxe. Depura a prosódia. Requer sinonímia. Evidencia o significante. Vela a significação.
A leitura sabe sobre o mundo dos homens, dos animais; sabe sobre o mundo espacial, sobre o mundo da ciência. Sabe sobre os mitos, sobre os místicos. Sabe sobre os sabores, os rancores, os destemores, os despudores. Sabe sobre as estripulias, as ousadias. Sabre sobre a imprescindível desnecessidade da poesia.
A leitura despoja o âmbito dos elementos trágicos, mágicos, dos fantásticos universos dos romances, dos contos, das crônicas. A leitura põe ordem no caos. Põe caótico um estado de ordem. Desestabiliza uma ordem de Estado. Devassa a pudicícia. Heroíza prostitutas. Diviniza certas musas. Deifica certas loucuras. Bruxiza certas criaturas. Cativa legiões de ledores compulsivos. Apaixona amadores de livros.
Em silêncio, a leitura é ato íntimo. Precisa de só ser. E ser só com quem a provê. A leitura habita espíritos recolhidos, jungidos. Reconforta aflitos. Aflige ingênuos. Assusta tementes. Importuna poderosos. Desestabiliza os que a desdenham.
A leitura é ato comunitário. Reúne pessoas. Que lêem juntos. Que lêem umas às outras. Que com ela se fortalecem contra grandes insultos. Pessoas que tornam a leitura sua uma urdidura.
A leitura é o sumo da vida. Apazigua clausuras. É entretenimento, que a infância entretece. Instrumento com que se instrui o jovem. Alento e alimento à alma do homem. Desvanecimento da velhice.
A leitura é cravo e ferradura. Constrói, mas também discrimina criaturas. Uma contradição que dói e dura. Instrui e plenifica, quando, mais que dádiva, é direito à vida. Sujeita e danifica, quando negada e impedida.
Ah! Sem nenhuma dúvida: leitura é a autêntica vida. Se não passada, se presentemente precária, é pacto inegociável de vida futura.

Tres amores

Pendido, à cata do sol que a vida lhe ilumina, o jacarandá parece ofertar-lhe alguns ramalhetes de suas flores. Azuis flores escoriadas de roxo.
Encarecido jacarandá ali nascido, que as mãos dele na terra escalavrada depositou com carinho e gosto. Ele foi crescendo, tomando corpo, ganhando robustez aos poucos. Agora, uma altiva donzela a espargir suas dádivas feitas de sombra e daquelas roxas flores marchetadas de azul, discretamente lindas, espargindo beleza e alegria àquele espaço.
Caprichosa, agradecida, com o extremoso trato que lhe devota, tem sempre vivos à sua vista, quando as estações lhe autorizam, uns cachos viçosos para contemplação e envaidecimento dele. Que decerto ao mirá-la, furtiva ou frontalmente deve orgulhar-se feito um genitor ante os dotes admiráveis de uma sua menina.
Ainda aí não se esgota sua dadivosa retribuição a seu progenitor. Que, para não deixar que consigo extinga sua majestosa beleza, produz sua reprodução em uma vagem, cujo formato segue o belo que a veste. E sua pérola repousa revestida de camadas esponjosas como a dar toda a guarida para a absoluta preservação de tal relíquia. Um jacarandá amado retribuindo com seu esplendor.
Todavia, bem sabe, não lhe poder obter exclusividade. Nem nunca pensou isso conquistar ou mesmo lhe pedir. É coisa esta da natureza humana. Lá eles se querem uns aos outros com exclusividade. Assim não dá para ser com plantas. Ela mesma ali publicamente exposta não é apenas dele. Sua beleza está para os transeuntes. Há os que não a vêem, sequer. Vão olhando para os seus problemas, não têm olhos para árvores ornamentais. Talvez apenas as pressentem à medida que passam. Por certo, tem-nas como algo natural. Que ali está e que parece sempre ter estado. Capazes mesmo de não se lembrarem de que uma delas existiu anos a fio onde hoje há tão-somente chão de cimento.
Entretanto se sente uma árvore dele e para ele. A ele se entrega. Para ele se embeleza. Para ele põe viçosas e aromáticas suas roxo-azuis florzinhas. Por ele aprimora os rendados verdes de suas delicadas folhas, que ao sol rebrilham. Ser pública é sua condição de ser da Terra. Ser dele é sua opção de amor por outro ser da Terra. É compreensível que ele se divida. Afinal, uma árvore só não faz um admirável jardim. Mais de uma é necessária para sua eficácia. Daí, por certo, a dedicação dele às duas outras.
A acácia entremeia-se com ela e a brinco-de-princesa. Não sabe por que essa ordem. Se quis à acácia destacar em virtude de umas suas certas propriedades chamativas. Soube que se trata de uma acácia-vermelha, cujas flores são róseas. Ela (tem de admitir) vai formando formoso e elegante porte. Erecta, vai, quase simetricamente, abrindo seus galhos longos, langorosamente perpendiculares, figurando-lhe um porte espadaúdo, indo a cada dia em busca de seus dez metros de altura. Já vai com ela ombreando-se. Não lhe ganhará em tamanho, contudo é de novo justo admitir que se lhe sobrepõe em elegância. Sua esperança é que, no final, se não se lhe igualar, tenha o suficiente para dela nada cobiçar. Sabe-se bela e muito querida. Isto lhe basta.
A pingo-de-ouro não passa ainda de um broto. Mesmo quando adulta lhes deverá muito em altura. Porém nada tem de desmedido e desengonçado em sua compostura. No geral, tornam-se, as pingos-de-ouro, numa pequena notável. Mimosas, elegantíssimas em seu colorido magistral. Mais imediatamente atrativas com seu ouro encarnado, que a recobre toda.
Também com ela o vê despendendo demoradamente sua atenção. Não sabe se a acácia,quanto a pingo-de-ouro lhe tem dela o amor. Como também não sabe o quanto do amor dele a elas. Sabe, sim, que a elas ama, porque muito bem as cuida.

Irrealismo

O cara! Moto própria para tal façanha. Daquelas para os ralis da vida: picadas em matas cerradas, estradas esburacadas, enlameadas; estradas de areiões extensos, densos; estradas sinuosíssimas com aclives/declives feitos cavaletes emparelhados. Motocicleta com feição dessas que se vêem em noticiários, competindo em programas esportivos radicais. Tantas quantas cilindradas, porte cavalar, amortecedores caneludos, pneus garrudos, rodas suntuosas.
A máquina! Cara talhado. Taludo. Jeans. Botinas. Descamisado. Pêlos ruivos pelos peitos; pelos braços; no rosto, em forma de barba imberbe; na cabeça, cabelos alongados em penteado tipo despenteado. Não magro. Nem gordo. Típicas luvas nas grandes e impetuosas mãos.
O palco! Um grande descampado, decerto mapeado em muitos terrenos baldios em estado de terra e grama à espera do que lhes destinarão seus proprietários. Os quais, por certo, também esperam, especulam, transacionam. Um vasto descampado ainda com nuances de quase nenhuma intervenção civilizacionista em sua constituição nativa. Da testada ao fundo, um acentuado aclive conformando uns trezentos metros mais ou menos. Enlarguecido em uns duzentos. Situado em bairro cujo enobrecimento vai dia a dia estendendo seus tentáculos, forçando os nativos moradores raquíticos a irem assentar-se em periferias que lhes sirvam e lhes caibam. Defronte, margeia-o a bela avenida ampla com ida e vinda do Jardim Tal – que bairro enobrecido passa a ter essa denominação – ao centro. Canteiro de ornamentação que separa as duas pistas com gramado, árvores em crescimento, iluminação pública moderna.
O cara com sua máquina, decerto, em incerto dia de seus aleatórios passeios, encontrou aquela avenida. Decerto percorreu-a com sua máquina possante roncando barulhenta, paquerando os que também ali faziam o mesmo, os que ali faziam cooper. E deu com aquele terrenão comprido, enorme, inclinado, escancarando seu verde e ondulado dorso.
Decerto pôs-se a mirá-lo, a admirá-lo, e o desejo de tê-lo deve lhe ter instalado a idéia de percorrê-lo com sua máquina. E ao fazê-lo, conheceu do terreno todos os seus acidentes. Pronto. Daí a determinação de entregar-se à ventura de executar um rali todo ele, único. Rodar vertiginosamente, em velocidade forte, investido de impetuosa coragem, os meandros daquele descampado de saliências e buracos. E ir e vir, em contornos e malabarismos que lhe vão ditando a ousadia do desafio.
E o amplo espaço descortinado pela avenida exibia um ruivo motoqueiro grandalhão, dorso nu rebrilhando de suor sob o sol da tarde, que fazia rugir em contornos, derrapagens, pinotes e coices sua altiva motocicleta dourada no caloso dorso daquele âmbito.
Era um sábado. Dos muitos transeuntes, vários se detiveram a ver o espetáculo. Moradores e freqüentadores dos botequins próximos também. O cara e sua máquina pareciam um. Concentrados em seu ato, operavam vigorosamente comandante e comandado. A montaria relinchava, galopando com furor. Corcoveava, pinoteava, escoiceava, quebrava súbito para um, para outro lado em obediência fidelíssima às ordens das rédeas e esporas de seu jóquei.
Surdiram, em alguns momentos aplausos. Os quais o ator, ou não ouvira, por concentrado inteiramente em sua íntima e ciosa interação com a parceira, ou com o silêncio sustentado desaprovava aquela intromissão de quem deixa seus afazeres para meter-se no de outrem. Depois de duas ou três manifestações da galera curiosa e intrusa, o certo é que o cara veio do fundo à testada com sua máquina em marcha lenta e em linha indiana. Entrou na avenida e foi-se indo embora sob uma recriminante vaia dos desocupados, que teriam de tornar à maçante rotina.
Domingo à tarde. Lá estavam o cara e sua máquina. Tais quais os de sábado. Como se não tivessem ido para casa. Todavia, parece que a atração imediata da platéia foi a chegada de duas viaturas da polícia militar.
O boletim de ocorrência informou que, preocupados com o risco de vida do cara, moradores circunvizinhos formalizaram a denúncia.

Mosca inazul

As mariposas e seus assemelhados vêm à lâmpada de centro única sobre a escrivaninha onde se entrega um sujeito à leitura ou à escritura. Os besouros das estações, sobretudo os primaveris e veranis, que, filhos prolíferos do aquecimento, pululam por onde quer que seja. Então, em noites dessas toda sorte de insetos, filhos dessas estações, infesta os ambientes e ficam dardejando em bêbados vôos de um canto a outro, tropeçando por quantos móveis se lhes deparam, sem que em nada lhes afetem a integridade física.
Decerto exercem-lhes sedução tamanha esses filetes em néon luminosos e lhes mentem a possibilidade de uma quentura que se furta, não correspondendo ao clarão da luz. E eles disputam-na. Mutíplices em porte, forma e cor. Zumbem alguns encorpados pelo espaço em vôos desastrados cujas aterrissagens quase sempre decorrem de audíveis colisões. Os pequeninos vão mais a distância. Talvez com receio de que tanta claridade os afete. E destes alguns picam como pernilongos que não são. Doídas mordidas que quase sempre lhes resultam em morte
Nessas ocasiões, o incomodado leitor ou escrevinhador demanda em estratégias que possam despistar incovenientes intromissores. Aciona o ventilador de teto. Acende uma lâmpada com maior potência de luz em um outro canto. Quando mais impaciente, apela aos aerossóis mata-moscas e espargem veneno pelo espaço.
Dado que o calor é tanto, às escâncaras têm de ficar janelas e porta. Então entram ali, quase sempre em lusco-fuscos, sabe-se lá por quê, seres não necessariamente amantes da luz noturna. Certo colibri, certo bem-te-vi que depois não conseguem sair. Certos pardais, quem sabe a vistoriar a possibilidade de novos beirais. Borboletas, preta, amarela, a enorme azul asa-delta, a alaranjado-abóbora de pontilhados preto e branco feita. Já houve em seu esbravejante vôo negro frisado de amarelo a visita de mamangaba. E também já esteve a mosca azul.
Esta chegou pousando no monitor. E foi amor à primeira vista. Encantou-se de tal modo com a luz-tela, que pareceu querer ficar para sempre dela. Esquadrejou todo aquele ludibriante retângulo. E depois de tudo perscrutar (ou beijar) vagarosamente, fixou-se no canto esquerdo azul bem mesmo sobre a barra de horário. E ali parecia adormecida. E como não a incomodaram, dali não saíra, mesmo depois que tudo se apagara. No outro dia, lá estava ainda, apenas com a diferença de que era já cadáver.
Mas o inusitado se fizera outro dia. Afinal o admissível e o inadmissível até que por aquelas amplas janelas dadas ao quintal podiam irromper haviam acontecido. Pois ainda não. Certa noite que já ia meio alta, tornando ao escritório em que costumeiramente ficava lendo ou escrevendo, viu-a mais à sua direita pousadamente posta em sossego. Apenas avançou alguns passos lá dela, quando ele acomodou-se devidamente à mesa.
Não era outra mosca azul, não obstante lhe tivesse vindo imediatamente o episódio com aquela. Incrível. Tratava-se de uma mutuca. Olhos grandes como aqueles. Mas feia, fosca, nada azul. Nunca mais vira essa mosca. Ficou mirando-a entre embevecido e saudoso. Fora arrebatado pelos seus tempos de banhos em rios, de currais com gado e cavalos, o habitat dela. Por ali zumbem. E a fêmeas, granadas, ferroam doído animais ou gente sugando o sangue.
Inseto de convivência de seu universo de infância e adolescência. De repente ali em sua mesa de homem maduro e já andado. Quieta. Estática. E de uma calma familiar surpreendente. Ali completamente imóvel, durante muito tempo depois que ele se abancara de novo à mesa. Não a movera o instinto do cheiro de sangue próximo. Madrugada em curso, ela ali imóvel. Em verdade adiantara-se um pouquinho mais sob as proximidades de uma folha de jornal soerguida, como se a incomodasse muita luz. Como somente as fêmeas são hematófagos, por certo devia tratar-se de um espécime macho.
Deixou-a ficar tal como estava. Cerrou janelas e porta. Foi dormir. De manhã ao descerrar tudo para permitir que o ar fizesse companhia à luz do dia que as vidraças transpusera, encontrou-a na mesma intacta postura. Mas, tal qual a mosca azul daquela vez, tratava-se tão-somente de uma mutuca-cadáver.

Rala Bola

Data 12/jan/2006

1958. Era tempo de Copa. Copa em que o Brasil pela primeira vez (e daí para todo o sempre até agora) chamaria a atenção do mundo para si. Conquistava o campeonato, esconjurando assim a chaga viva da tragédia do Maracanã de 1950, que lhe impusera o Uruguai.
Começava a surgir o país do futebol. Que se sobreporia a todos os outros. Futebol efervecente. Que brotava pelas várzeas, nos campinhos de terra batida e traves retangulares. Um dos raros casos em que a glória não surge do meio afortunado, da confortável riqueza. O craque vingava do infortúnio, do desconforto da pobreza.
Pois foi então que os arianos suecos assistiram e deram a ver e a ouvir ao mundo ao Nascimento do futebol maior. Que vinha de um país periférico, de descendência bugra, negra e malária.
Era um futebol carnavalizado. Jogadores passistas. Os que compunham a comissão de frente eram verdadeiros mestres-salas. Todos dividiam, com elegância e maestria, sua porta-bandeira ao ritmo de um bailado grandemente contrário ao cânone estatuído pela sobranceria inglesa. Futebol moleque Pelé. Futebol de um incerto Mané ziguezagueando lá na ponta direita, pondo os gringos na roda. Visível futebol deboche. Quebrando o esquematismo de um futebol burocrático e emparedado: o futebol de botina.
E lá vinha Garrincha com seu andar desengonçado, com suas jingas ludibriantes, apavorando suecos, russos, alemães etc. visivelmente enfurecidos e humilhados. Aquele Mané ninguém de lá do mato virgem, mancomunado macunaimamente com aquele negrinho endiabradamente atrevido e debochado como o fazem os tais sacis de lá.
E Pelé e Mané deitaram e rolaram sob o uníssono e estrondoso troar do, desde então universal, olé, olé! Foi a consagração e a assinatura do mundo curvando-se à superioridade inequívoca de um futebol vivo, imprevisto, singularmente inimitável, calcado na compulsiva e peculiar inventividade de infindo improviso.
Oito anos depois, superados alguns percalços, este futebol que já então assumira os caracteres de arte e magia, como é próprio da grande arte – intuição, invenção e técnica – fora ao México na persecução da apoteose: a glorificação.
Todavia, para decepção de muita gente, este futebol chancelado por Pelé e Mané foi ficando europeizado. Foi ficando cada vez mais futebol burocrático. Futebol de resultado. E o futebol brasileiro foi ficando cada vez mais submetido aos esquemas táticos. Pelés desapareceram. Mané Garrincha tornou-se a Ursa-maior e virou saudade. Os ronaldos foram absorvidos pelo futebol eurodolarmente de resultado.
Por certo, a síndrome de 1982 desaguou nisso. O mágico futebol brasileiro daquela vez novamente encantara. Todavia não vencera. E então o mundo já vivia o lema de que somente convence, não importa como, quem vence. Vencer e vencer.
E o futebol brasileiro foi ficando europeu. A tal ponto que hoje, como se sabe, os jogadores do time brasileiro são todos de time europeu. São oriundos do Brasil, mas jogam na Europa. E foi exatamente isso o que se viu terça-feira passada. Não era o Brasil jogando. Eram dois times europeus. Um futebol monótono, força física contra força física. Nenhuma jogada brasileira. Cautela contra cautela. Enfim, o burocrático milionário futebol a que pouco importa convencer. Importa vencer. Importa o resultado.
Disseram isso, por certo, a Ronaldinho Gaúcho e a Robinho, os que, quando podem, demonstram conter o gene Pelé/Mané. Que os malabarismos, os dribles desconcertantes, os improvisos ficassem apenas para os treinos-cena midiáticos.
Parece que os gringos, que sempre têm deste país tudo açambarcado, estão (por último?) apossando-se do futebol. Não, todavia, para dele se apoderar e etiquetá-lo como made in, mas para descaracterizá-lo. À medida que o vai reabsorvendo, vai tornando-o  nova e inteiramente anglo-saxão.

Uma incerta mosca azul

 

Data 12/jan/2006

A mosca azul decerto perdida e atraída, como a mariposa e os outros ínfimos insetos de luz, surgiu, em seu vôo turbinado, pondo-se a circundar a lâmpada.
Tratava-se de um fato singular. Pois do pouco que dela sabia, tudo girava em torno da luz do dia. Tida e havida pela sabedoria popular como a varejeira. Com seu zumbido peculiar zunindo velocíssima pelo ar à cata do mínimo cheiro de matéria morta decompondo-se. Parece, pois, que o mórbido é que lhe sustenta a vida.
Ela viera de onde, sendo plena noite fechada, sem lua, estrelas altas, escuridão da noite acentuando sua negridão e, ali, o único cheiro forte sendo o dos livros?
Entrara-lhe pela ampla janela um vertiginoso zumbido que, somente depois, a luz da lâmpada de mesa circundada permitiu vislumbrar a forma de uma mosca.
E, em um dos seus curtos repousos, pôde saber que se tratava de uma mosca azul. Uma varejeira? À noite!? Então, pôs-se ele a voejar, em retrospecção, numa velocidade oposta à da mosca, seu cotidiano noturno, já meio longevo. Em nenhuma noite vivida houvera uma mosca azul. Muitos, os insetos. Os cíclicos: a aleluia, alguns besouros, os mosquitinhos. Os mais comuns, mais freqüentes: os mosquitos domésticos, as formigas, uma barata. Os mais raros: uma desgarrada abelha, uma perdida borboleta, uma conturbada libélula. E próprios da noite: as várias espécies de mariposa – miúdas, graúdas, medianas. Nunca, entretanto, uma mosca azul feito aquela.
Voou. Voou. E num desses vôos encontrou a tela do computador. De novo voou. Agora em torno da tela. Tornou a assentar. Ficou por alguns minutos ali, estática. Os olhões esverdeados luminosos. Quem sabe, examinado as imagens. Sua tromba sugadora procurando experimentá-las. Moveu-se um pouco para um e outro lado da tela. Tudo rapidamente. E logo alçou vôo de novo.
E assentou-se na parte anterior do monitor. Abaixo ainda do botão liga-desliga. Como se naquela luz mínima esverdeada houvesse encontrado uma companhia. Sim, porque ali se deixou ficar. Parecia completamente à vontade.
Ele a um palmo dela, que se mostrava segura e indiferente. Continuava a contemplá-la, desconhecendo-se a si mesmo, cuja imobilidade advinha dessa total concentração na mosca. Talvez porque fosse noite, e ela, imóvel, abrangida pela luz da iluminaria era bem diferente da mosca azul já tantas vezes vista. Mas não assim olhada.
A memória trouxe-lhe várias situações em que a viu. Um boi. Um cão. Um gato. Um sapo. Animais mortos expostos em pastos, terrenos baldios, ruas, estradas. Putrefazendo-se, fedendo, empestando o ar e recobertos pelas azuis reluzentes varejeiras que os roíam.
Mas também lhe trouxe a memória imagens outras. Em certos campos de concentração de famintos, em Biafra, em Bangaladesh, esqueléticas, inertes, estendidas no chão, amontoadas, no regaço ou no colo de sua mãe, crianças, ainda vivas, sendo roídas por azuladas moscas.
E lhe trouxera ainda, a memória, costumeiras situações em que comensais felizes, ante a farta mesa de apetitosas comidas, em lautos almoços ou jantares, desesperarem-se, quando súbito irrompe, a mil, uma ou mais delas atraída pelo inebriante cheiro.
Ele mesmo, em situações desta, com a família, foi caçador irado delas. Não se apaziguando, senão exterminando-as, enquanto não as enxotasse de vez. E se a atingisse, deixava-a como o poleá do poema de Machado a deixou: “Rota, baça, nojenta, vil”.
Mas, ali, não se pôs a dissecá-la como fez o poleá. Pôs-se a vê-la que, com suas patas dianteiras, limpava-se metodicamente. Limpava os belos e grandalhões olhos esverdeados que se tornavam um e enorme, quando olhavam para um só lado. Limpava a tromba. Depois as patas traseiras limpavam as asas que à luz fulguravam. Depois as patas traseiras limpavam o corpo. Por fim, depois de muito limpar-se, acomodou-se um pouco mais abaixo, como que se escondendo da luz. Ali se aquietou. Por certo entregava-se ao justo sono de uma mosca azul.