Natal: ano novo

Natal: ano novo
Data 24/dez/1998

O horizonte
ao longe
armazenando no ventre
todos os sortilégios
que o homem
este bicho metido a mago
supõe que descobre.

O homem é movido
a horizontes.
A nostalgia do espaço
o põe a tramar.
Ser homem é tramar.

Tramar entre si.
Tramar contra si.
Tramar contra o aqui.
Tramar contra o além.

Trama
quem difama.
Trama
quem inflama.
Trama
quem ambiciona.
Trama
quem ama.

Quem difama
trama.
E ama?
Quem inflama
trama.
E ama?
E quem ambiciona?

Eis o drama:
a trama de Deus,
a trama dos judeus,
a trama de Herodes,
a trama de Jesus,
a trama de cada um de nós.

Há na história do homem
Deus e o diabo,
o espaço
os astros
e os homens.

Em quintais

Em quintais
Data 19/dez/1998

Mesmo no interior, as casas com quintais se rarefazem. Quando os há, cimentam-nos. A civilização da cibernética parece repugnar a terra. Não obstante aconteça no planeta Terra.

A terra suja, a terra encarde. O cimento, puro concreto, conquanto dela decorra, não a lembra. O barro de que somos feito é repelido. Repugnamos aquilo que essencialmente somos. Haja vista os cemitérios. Até na morte à terra bruta, mater matéria, estranhamente nos negamos.

Pois os quintais se rarefazem. Entanto, agonicamente, alguns resistem por aí. E se fazem jardins, minipomares. Logo, quintais assim se fazem também viveiros inevitáveis. Ali moram, habitam insetos, pássaros, borboletas, abelhas, sapos, (morcegos).

Mas há um réptil que não os deixa sempre, uma espécie de lagarto. Seu hábitat mesmo são os muros . Ao quintal desce movido por alguma necessidade e logo torna ao muro. Fica como que paralítico.largo espaço de tempo. Um meio corpo erguido e a cabeça alçada argutamente perscrutando. Não costuma andar agrupado. Mais longo o muro, muito mais lagarto. É um animal, embora comum, que atrai a atenção. Parece não condizer com os bichos de agora. Mais apropriado para as eras dos dinossauros. Seus olhos triangulares, principalmente quando espreitam, vêem pelos cantos. Pálpebras derreadas. Olhos, como os de Capitu, oblíquos e dissimulados. Olhos de ressaca.

Quando menino vivia me deparando com toda ordem de bichos selvagens. Da família desse calango, impressionou-me o teiú. Um lagarto-jacaré em pleno mato. A vez que o vi, fiquei paralisado. O coração em alvoroço. Enorme, foi andando calmamente, indiferente a mim , que, com certeza, via a meia distância.

Mas desse lagarto de muro também tínhamos receio. Eu e o outros meninos, meus amigos. Havia uma história sobre ele que nos apavorava. Havia muitas outras histórias que nos apavoravam, pois nelas críamos. A da mula-sem-cabeça que soltava fogo pelas ventas. A de lobisomem. Sempre virava lobisomem um velho introvertido, esquisito que todos conheciam.

Nós o conhecíamos por papa-vento. Diz que era uma vez uma linda menina de olhos azuis, cabelos ruivos e pernas bonitas, brincava de casinha com sua boneca bonita de olhos verdes e louros cabelos no quintal de sua casa. No ir e vir de seus afazeres de senhora doninha de casa, sentou-se exausta no toco de uma mangueira que há tempos havia sido cortada. Tão entretida ia com sua boneca que não viu ali, paralítico, olhos-de-capitu, o papa-vento. Saiu gritando para dentro de casa. O papa-vento tinha grudado na sua nádega. E diz que dali só saía quando desse trovoada. Foi uma tristura. A família, todo o mundo rezando para que viesse chuva.

Estava eu mergulhado nesta lembrança, enquanto espiava um deles no muro. O papa-vento também ciganamente me espiava. E eis que num rasante surdiu um baita bem-te-vi abracando com o bico o papa-vento. Assentou no fio de energia por instantes. O lagarto se contorcia. Mas o bem-te-vi tinha o bico poderosamente grudado nele. Voou para a goiabeira. Pacientemente, buscava um jeito de comer aquele bicho muito grande para o seu bico. Mas do lagarto não desgrudava. Acho que mesmo que chovesse.

As honras da casa

As honras da casa
Data 12/dez/1998

O filho se fazia músico. Profissionalizava-se em sua paixão. Coisa de cobiça e inveja. De quase nenhuma coragem. Comum é tornar a paixão um robe. Haveria uma audição. Momento afeito para uma participação de destaque. Expectativa e nervos abertos em casa. Ambiente afeito a clima de casamento. A mãe a mil. Leva, busca, traz, recomenda, recrimina…

Tudo em ritmo de vertigem. Tratava-se, pois, para a família, de seu virtuose. E cria que, logo, o seria ao grande público. Tudo sendo feito com esmero para dar suporte perfeito. O filho sendo o espetáculo convertia-se no bem supremo da família.

Tensão e preparativos. A mãe dissera ao pai da completa inabilidade do filho para embelezar os sapatos. Execução musical assim a caráter faz-se calçado de sapatos pretos. Os do filho estavam puídos.

O pai pegou-se em menino feito engraxate na sapataria de seu pai. Aprendera como espalhar a graxa com a mão (engraxate categorizado assim é que fazia). Escova boa tinha pêlo macio. E roçava leve e solta o sapato. Já no jeito de se pegar na escova, se conhecia o bom engraxate. Engraxate bom nada lambuza de graxa. Não suja as mãos, conquanto com elas engraxe; não mancha meia ou barra de calça. E maneja o pano de lustração com arte. O pano canta uma toada logo percebida quando em boas mãos. Adiciona gotículas de água com técnica para que a alva do brilho fique mais clara.

Era assim o garoto engraxate engraxando os sapatos dos clientes da sapataria de seu pai.

Os sapatos do filho vão perdendo a puidez. Na primeira demão a graxa escondeu o feio aparente. Readquiriu o viço da negritude original. Segunda demão, e o brilho perdido tornara. Sapato preso entre os joelhos (outra técnica do grande engraxate), gotas d’água esparzidas para impedir o embaçamento, e a cadência da flanela, cujo ritmo vai produzindo o brilho.

Sapatos e olhos se miram:: fusão de brilhos. O menino engraxate ali está todo tomado de sua arte. Tensão, energia e emoção são os suores que lhe molham. Uma coisa inigualável. Impagável: servir-se de engraxate a seu próprio filho.

Insônia

Insônia
Data 05/dez/1998

Soube-se delas já assim. Uma para a Outra. Duas mulheres sós cumprindo seu destino. Pacatas. Acomodadas. Cidadãs. Decerto, a alma calcinada pelos imperativos da crueza do real, engolindo ideais, arquivando sonhos.

Conquistas singelas, pois singelas são. Estudos rotineiros de classe média. Quase sem abalos e sobressaltos. Dinheiro pouco, contudo suficiente para ir dando anos à vida.

Por vezes, coisas de quem é vivo, deram vazão à vaidade. Não propriamente à devida aos dotes femininos. Não. Esses, tudo levava a crer que os definitivamente apagaram em si.. Mantinham honradamente a condição de mulher. Nada mais que isso. E parecia que consideravam o bastante.. Mulheres tão-somente. A feminilidade à prova. Mas não fêmeas. Optaram pela não procriação. Logo, definitivamente solteiras, e não mães naturais.

A vaidade, então, sucumbia-as a apelos de ordem social. Por exemplo, tanto uma quanto outra, se entregaram ao conto do vigário da candidatura a vereador. A politicalha, ávida de voto para a eleição a cargo majoritário, arrebatou-as à candidatura ao legislativo municipal. Não se elegeram. Obtiveram votos insuficientes para isso. Serviram, este o fim, ao senhor candidato ao cargo majoritário. Ficaram magoadas. Tornaram, felizes, à condição de ser gente comum.

E foram fiando o tecido vida, vestuário que as recobrirá no fim e as inscreverá na memória do universo dos comuns. Trata-se do familiares e dos amigos. Restrito universo. Porém, o mais caro e imortalizador.

Duas mulheres irmãs decididas à vida solitária a dois sem CPF cabeça de casal. Não obstante, sendo cabeças heterogêneas, corpos heterogêneos.

Entregaram-se uma à vida da outra. E são irmãs-mãe uma da outra. Ajudam-se mutuamente, recriminam-se entre si. Mãe passando admoestação à filha diversamente. Mãe elogiando a filha diversamente.

Entregaram-se uma à vida da outra. E são irmãs-mãe uma da outra. Ajudam-se mutuamente, recriminam-se entre si. Mãe passando admoestação à filha diversamente. Mãe elogiando a filha diversamente.

Entregaram-se uma à vida da outra. E são irmãs-mãe uma da outra. Ajudam-se mutuamente, recriminam-se entre si. Mãe passando admoestação à filha diversamente. Mãe elogiando a filha diversamente.