Desaparecendo

Desaparecendo
Data 28/nov/1998

O diagnóstico: havia que extraí-lo. Seu estado comprometia a estabilidade dos demais. O tempo de ir tenteando se esgotara. Já se metamorfosera em inimigo. Como um morto querido em decomposição. O odontólogo enalteceu a excelente qualidade atual da prótese .Ele ficou com o dente arrancado cravado na cabeça. Doía-lhe tanto não tê-lo mais. A língua a todo instante a acusar ausência dele.

Na verdade, a dor não era de dente. Já havia se acostumado com isso. Perdê-lo-ia um dia. Há alguns anos a previsão se fizera. Tinha consciência da fatalidade contra a qual tudo seria inútil. Todavia o que quase o atordoava era uma idéia que não lhe saía.

A perda do dente avivava uma fatalidade maior. Com ele se ia a própria vida. Por que o organismo se dera ao trabalho de expelir aquele dente? Não se tratava de um corpo estranho. Dispunha de uma parte sua. E se um organismo se automutila, suicida-se. Ainda que o faça para distender, como pode, a vida. O todo já não é o mesmo. O que se tem é um sopro de si. Um lembrança mutilada do que fora. O tempo desdobra o homem em muitos outros. Ao fim, nada somos do primeiro, tampouco do do meio. Na queda de um dente, ou na sua extração obrigatória, há um alarme da progressão degenerativa de uma vida desde a sua origem.

Veio-lhe o tempo do grupo escolar. Cidadezinha pacata. Pacata e pobre. Vivia das cerâmicas. Mas a escola tinha dentista. Terror deles. Ao dentista, preferia-se qualquer castigo. O motorzinho zinindo… E a aguda dor de pôr lágrimas nos olhos. Quase todo o trabalho era sem anestésico. Tinha menino que saía da cadeira aos berros.

Uma cárie de colo avançada condenara-lhe o molar esquerdo. O dente era uma panela. Tudo ali se alojava. Foi a sua primeira extração. Primeira e única até então. Agora, década após, sacrificava o outro. A homogeneidade, com ausência do dois. Uma harmonização pela falta.

Dois dentes a menos na boca. Começara o período de perdas? As rugas andavam visíveis pela face. As flacidezes. Certos achaques. Estremeceu. Caminhava deliberadamente para o nada. Não tinha até então atinado com isso. Essa perda do outro molar trouxera-lhe o aviso.

Quantos já fora? Vários. Certo, todos demandaram para ele. Mas aqueloutros, em si mesmos, não foram ele. E a seu tempo desapareceram. O retrato da carteira de identidade tirada quando ainda fazia o Tiro de Guerra é testemunha intangível. Altivo atirador. Traços másculos. Linhas indefectíveis. Claro, já antes dele, por ele, outros dois, pelo menos, passaram, se foram. Depois, ele, que ficara sendo apenas aquele retrato, foi-se.

Há agora o que perdeu o segundo molar, que tem rugas denunciadas; que deixa entrever celulites; que se pega em fadigas. Esse é. Mas vai chegar o seu tempo de também não mais ser.

E, como os outros não sabiam, não sabe se ainda outro haverá, antes que se dê a completitude.

Solitude/solidária

Solitude/solidária
Data 21/nov/1998

Íamos descontraídos. Manhã quase a meio. Tacitamente nos recompúnhamos de uma quase tragédia de véspera. Resplandeciam ao sol um lago povoado de pássaros, gansos e pescadores; a multiplicidade do verde circundante, os paralelepípedos subindo e descendo ladeiras tornadas ruas. Ao longe o largo horizonte composto de montanhas.

Sol, verde, água e ar. Era tudo o que se podia querer depois de um grande susto. Dávamos ao corpo a livre ação de ir andando. Andando para lugar qualquer. Unicamente, se deixava o espírito em exercício. E visto estava pelos olhares aguçados a busca de aprazimento. As mãos dadas (“O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”) esquecidas no mútuo reconforto: vasos comunicantes telepáticos prescindidos das palavras. Passeávamos A graça de assim sermos. Mais ainda agora depois de ruim fato de que nos sabíamos ilesos.

Íamos. No meio do caminho, para a qual não saíramos, irrompe uma bela igreja. Conquanto situada num lugar ermo, não prescindia dos requintes próprios delas. Aquela, ao contrário, avantajava-se às de muitas cidades. Fora ali que veria depois aquela andorinha que fizera ninho ao pé de São Francisco.

Andávamos. Da igreja para aonde mais fôssemos. Apraziam-nos a brisa, o sol, a paisagem a que não estávamos acostumados. As serras: enormes vales — o vácuo e o éter; as montanhas.

Agora, subíamos e descíamos as ladeiras feitas estrada em paralelepípedo. Caminhávamos para a cidadezinha próxima. Davam-na como muito bela. Andando, abertos a tudo, com pouco lá estaríamos. Às margens da estrada casas todas com compridas escadarias incrustadas em meio a vegetações. Altos barrancos rochosos recobertos de gramineas.

Curtíamos tudo e a nós mesmos. A alegria de viver. Esquecidos da miséria e opressão que sabíamos no País, no mundo. Provisoriamente que fosse, desconectados daquilo. Respirávamos a vida. Íamos reparando em seu dom pelo caminho.

Pouco antes de atingirmos a cidade, aquele lírio. O grande ramo que lhe dava suporte, apenso às rochas do barranco, curvava-se à estrada como se ofertasse a flor. Ficamos extáticos O inóspito do lugar, a multiplicidade de ervas não se nos pareciam compatíveis. Ela impediu-me que lho apanhasse. Melhor ali estar para quem mais pudesse partilhar daquele instante de delírio.

Manoel de Barros

Manoel de Barros
Data 07/nov/1998

Publico hoje um pouco da poesia de Manoel de Barros. Poeta que, não obstante publique suas poesias desde 1937 (Poemas concebidos sem pecado – título do primeiro, somente a partir da publicação de O guardador de águas foi melhor observado e sua grande e original poesia foi descoberta pela crítica. O isólito, o estranhamento, a reelaboração sentido das palavras, o fragmentário imagético, a metalinguagem incessante, tudo muito impregnado de telúrico pantaneiro-universal (é matogrossense fazendeiro, residente em Campo Grande). Foi agraciado com o prêmio de poesia da última Bienal Nestlê pela sua obra Livro sobre nada, do qual transcrevo, para seu deleite, a 3a. parte que leva o mesmo título do da obra.

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É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez
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Tudo que não invento é falso.
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Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
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Tem mais presença em mim o que me falta.
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Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
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Sou muito preparado de conflitos.
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Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
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O meu amanhecer vai ser de noite.
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Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
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O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
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Meu avesso é mais visível do que um poste.
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Sábio é o que adivinha.
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Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
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A inércia é o meu ato principal.
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Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
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Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
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Estilo é um modelo anormal de expresão: é estigma.
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Peixe não tem honras nem horizontes.
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Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
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Eu queria ser lido pelas pedras.
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As palavras me escondem sem cuidado.
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Aonde eu não estou as palavras me acham.
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Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
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Uma palavra abriu o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja.
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A terapia literária consiste em djesarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
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Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
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Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frase para antes de mim.
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Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se
compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
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Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
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O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
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Por pudor sou impuro.
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O branco me corrompe.
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Não gosto de palavra acostumada.
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A minha diferença é sempre menos.
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Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
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Não preciso do fim para chegar.
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Do lugar onde estou já fui embora.

FIM

(Barros, Manoel. Livro sobre nada.2a. ed.Rio de Janeiro: Record, 1996.)